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Mário Scheffer: Crônica do atraso

Saúde privada quer mais recursos públicos para si

Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, durante fórum promovido pela Folha em 2014
Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, durante fórum promovido pela Folha em 2014 - Daniel Guimarães - 26.mar.14/Folhapress

No artigo "Atraso crônico" (30/4), nesta Folha, Claudio Lottenberg defendeu um "novo sistema de saúde para o Brasil", no qual o Estado teria "a responsabilidade de criar os elementos facilitadores para atrair ainda mais a iniciativa privada".

A ideia de maior participação do setor privado na definição de políticas públicas de saúde, que circula em vários documentos e eventos, é uma platitude enganosa. O que executivos e entidades de planos de saúde, hospitais particulares, medicina diagnóstica, organizações sociais, indústria farmacêutica e de equipamentos querem é mais recursos públicos para seus negócios privados.

A noção ambígua de privado e público na saúde e a longeva e íntima relação entre empresários do setor, políticos e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) obscurecem um debate que deve ser esclarecido.
Segundo a Constituição, a saúde é livre à iniciativa privada, que realiza convênios, vende insumos e serviços para complementar o SUS, ou se organiza para atender clientelas de planos de saúde e particulares.

Há estabelecimentos privados que prestam serviços ao SUS e aos planos de saúde; organizações privadas que administram unidades públicas; incentivos públicos para estruturas que não atendem o SUS.

Quem tem plano de saúde, quase 30% da população, utiliza frequentemente o SUS em emergência, tratamentos complexos, remédios caros, vacinações, campanhas de prevenção, atendimentos negados pela assistência suplementar ou sempre que o trabalhador perde o benefício do plano juntamente com o emprego. Além disso, cidadãos pagam do próprio bolso por medicamentos, exames e consultas.

Num sistema desigual e segmentado, tudo junto e misturado, sem financiamento público suficiente, a histórica aproximação de governos com o segmento privado pouco contribuiu para viabilizar o SUS constitucional, de qualidade e para todos.

O ex-presidente José Sarney ouviu o setor e ampliou o abatimento das despesas privadas com saúde no IR. Seus sucessores Collor e Itamar perdoaram dívidas de hospitais privados com o extinto Inamps. Fernando Henrique escancarou BNDES e Caixa para investimentos na rede particular de saúde. Lula agradou a grandes hospitais de São Paulo ao flexibilizar títulos de filantropia com isenções milionárias sem devidas contrapartidas ao SUS.

No governo Dilma, foi aprovada a abertura irrestrita do capital estrangeiro à saúde privada, e os planos de saúde tomaram a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); obtiveram aumentos de mensalidade bem acima da inflação e diminuição de multas; deixaram de vender planos individuais e lucraram com planos de adesão, que fogem das regras de reajuste e rescisão. Delações da Lava Jato prometem expor algumas dessas transações.

Agora, com Temer, empresas da saúde comemoram mais empréstimos, refinanciamento das dívidas fiscais (Refis) e a promessa da liberação dos planos "populares", de menor preço, coberturas reduzidas e franquias, e da aprovação da nova lei dos planos de saúde, escrita pelas próprias operadoras.

O setor privado não é inimigo do SUS, pois dele sempre dependeu. Mas, ao contrário de outros países, não admite aqui a racionalidade do sistema universal nem se compromete com a superação dos determinantes e riscos de adoecer e morrer no Brasil. Apresenta-se como o novo e o moderno, mas no fundo escreve a crônica do atraso ao solicitar, em ano eleitoral, mais "elementos facilitadores" que resultarão em um SUS menor, para pobres, reduzido a uma rede de serviços para quem não pode pagar pelo setor privado subsidiado com recursos públicos.

Mário Scheffer

Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP

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