Confesso, estou estupefato. Já estava me acostumando com as sandices, os arrogantes desafios à ordem pública, as toscas cafonices matinais cotidianas, as agressões gratuitas e grosseiras à sociedade civil e às instituições. Eu estava entorpecido. Já achava que era natural ministros acreditarem que a Terra é plana, e já aceitava a paranoia do presidente, a psicopatia do ministro da Educação, a obtusidade da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a canalhice do ministro do Meio Ambiente. Todos em grande harmonia. O destempero cotidiano era tão assíduo que se tornou uma banalidade. O homem se acostuma a quase tudo. É de sua natureza.
Mas eis que aparece um dissidente que abre fogo contra o presidente e sua quadrilha. Arma-se, em resposta, um circo. Os ministros de Estado, perfilados, degradados à condição de ordem unida, enquanto o presidente coaxava seus usuais impropérios. Garbosos generais rebaixados à condição de mercenários. Homens públicos reduzidos à posição de serviçais. Um espetáculo ignóbil, para dizer o menos.
Em seguida, o mercado de votos. O presidente compra o Congresso e o Exército. E a moeda é a mesma: cargos, cargos e cargos. É verdade que governos anteriores, Sarney, Fernando Henrique e Lula (só Dilma resistiu), usaram o mesmo dispositivo, mas compravam “governança”, enquanto o atual presidente compra impunidade. Impunidade para si, para seus filhos e para seus amigos.
Tudo bem, podemos dizer que engolimos um avanço na degradação da cidadania, do brio nacional; mas, afinal, adaptabilidade é uma aptidão que permite a sobrevivência das espécies. Fomos diminuídos como homens civilizados, mas ainda restava algum inconformismo.
Então veio a surpresa maior, a revelação do que ocorre em uma reunião do ministério. Não só o presidente expõe toda sua obscenidade como também a sua tropa de choque exibe desqualificação moral e política. O ministro da Educação propõe cadeia para a oposição e para o Supremo Tribunal Federal; a Ministra da Mulher vai processar governadores e prefeitos que apoiam o distanciamento social; e o ministro do Meio Ambiente, com a maior impudência, propõe aproveitar-se da pandemia para driblar a legislação conservacionista. E o pior é que todos os demais ministros se calaram. E se calaram, às vezes, sorrindo; alguns, um pouco constrangidos, se abstiveram. Uma vergonha para todo brasileiro que viu essa cena degradante.
O mais aberrante episódio, entretanto, foi proporcionado pelo próprio presidente, que propôs armar o povo brasileiro para contrapor-se a um golpe. Criar-se-ia assim uma milícia armada, obviamente bolsonarista. Mas não são as Forças Armadas as responsáveis pelo Estado de Direito? E esses generais que se calam, humilhados, desrespeitados!
Sim, o homo sapiens se acostuma com quase tudo. Todavia, a calamidade não está apenas na Presidência e em seus ministros cúmplices, mas na contaminação progressiva, porém inexorável de toda a população. E é esta condição, a generalização da indecência, que torna este governo intolerável.
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