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Silvia Pimentel, Alice Bianchini e Sandra Lia Bazzo Barwinski

Gravidez infantil instiga comoção nacional

Felizmente, as manifestações humanistas e solidárias foram maioria

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​Silvia Pimentel

Professora doutora da Faculdade de Direito da PUC-SP, foi integrante por 12 anos do Comitê sobre a Eliminação contra a Mulher (Cedaw) da ONU; autora, ao lado de Alice Bianchini, de “Feminismo(s)” (ed. Matrioska)

Alice Bianchini

Vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB e da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas (ABMCJ)

Sandra Lia Bazzo Barwinski

Advogada, é co-coordenadora do Cladem Brasil e vice-presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB-PR

O triste caso da menina pobre, negra e grávida aos dez anos, no Espírito Santo, recebeu ágil e ampla divulgação, comoveu a sociedade brasileira e instigou pessoas, grupos e instâncias do sistema de Justiça, da área médico hospitalar, da assistência social e da psicologia a uma ação coletiva solidária exemplar. Foi necessário inserir a criança, e sua família, em programas de proteção, significando que, para exercer sua cidadania e seu direito ao pleno e harmonioso desenvolvimento, será ela privada de seu próprio nome e dos seus vínculos pela desterritorialização.

A grande mídia sensível ao sofrimento da menina vítima revelou-se ágil e profícua. No mais das vezes, apresentou informações e análises lúcidas à sociedade sobre o ato criminoso hediondo perpetrado e sobre o fato trágico desta gravidez infantil. Isso contribuiu para sustentar a sensibilização, a comoção e a reflexão crítica sobre o caso a partir de uma perspectiva interseccional de gênero, raça e classe, que também contabiliza as condições estruturais de vulnerabilidade em que vive a grande maioria das crianças brasileiras.

Militantes pró-direitos das mulheres protestam diante do STF após episódio envolvendo aborto de menina de 10 anos, que foi estuprada pelo tio e acossada por militantes religiosos - Pedro Ladeira - 20.ago.20/Folhapress

Sobretudo, numa perspectiva jurídica, é preciso sublinhar que o Código Penal vigente prevê, em seu artigo 128, desde 1940, dois casos em que o aborto é permitido: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante e quando a gravidez resulta de estupro, sendo condicionados apenas ao consentimento da mulher e à realização por médico. E, desde 2012, há a autorização, pelo STF, no caso de feto anencéfalo. Nenhuma mulher é obrigada a fazer aborto, nem mesmo os autorizados legalmente, mas toda mulher tem o direito de realizar a interrupção da gravidez prevista em lei, caso assim decida.

Além disso, conforme os instrumentos jurídicos dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, da ONU e da OEA, as manifestações contrárias ao cumprimento da legislação brasileira representam violência de gênero contra as mulheres e meninas, entendendo-se esta violência como um dos meios que perpetuam a posição subordinada das mulheres em relação aos homens, assim como papeis estereotipados do feminino.

Na contramão do disposto no Código Penal e das recomendações internacionais, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, lamentavelmente, declarou que a criança deveria levar a gravidez a termo e chamou de irresponsáveis as autoridades jurídicas e sanitárias que autorizaram e encaminharam a realização do aborto legal. Essas posições produziram uma cena surreal. Em pleno século 21, assistimos às disposições estabelecidas num Código Penal que tem 80 anos sendo contestadas e desrespeitadas com base numa ideologia neoconservadora religiosa que, desde alguns anos, tenta obstaculizar, nas Américas e em outros contextos, a igualdade de gênero, especialmente no que diz respeito a autonomia reprodutiva de mulheres e meninas.

Felizmente, em número muito maior foram as manifestações humanistas e solidárias por parte de pessoas e instituições dos mais variados credos e ideologias. Nessa resposta vigorosa das instituições e da sociedade, sobressaiu, sobretudo e especialmente, a força coletiva dos movimentos feministas, que historicamente criticam a dominação e opressão patriarcal das mulheres e meninas. Uma força solidária que constrói pontes e articula energias individuais e coletivas, impulsionando a emancipação a partir da ética do cuidado e da compreensão da gravidez e maternidade infantil forçada com uma forma de tortura.

Essa confluência virtuosa fez desse episódio tenebroso um caso bem-sucedido de respeito à lei e garantia de direitos. Abriu-se aí um amplo espaço para iniciativas que assegurem de maneira efetiva a todas as meninas e mulheres pleno acesso a serviços públicos nas áreas da Justiça e da saúde que lhes garantam o direito de decidir em relação à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei.

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