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Valdinei Ferreira

Teocracia à brasileira

Bolsonaro realmente acredita em missão divina contra o mal

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Valdinei Ferreira

Doutor em sociologia (USP), é pastor da Catedral Evangélica de São Paulo (Primeira Igreja Presbiteriana Independente de São Paulo) e autor de ‘A bênção da vulnerabilidade: reflexões em templos de pandemia’

“Posso orar pelo senhor, presidente?” é a oferta que Jair Bolsonaro sabe que ouvirá nas suas paradas para conversar com apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada.

A união entre evangélicos e Bolsonaro revela-se a mais estável até esta altura do mandato presidencial. Trata-se de apoio que vai muito além daquele oferecido pelos pastores que frequentam o Palácio do Planalto, possuem carreiras políticas consolidadas e interesses empresariais nada sagrados.

O pastor Valdinei Ferreira, da Catedral Evangélica de São Paulo - Zanone Fraissat - 7.nov.18/Folhapress

Nas interações entre os fiéis evangélicos e o presidente, são c omuns leituras de textos do Antigo Testamento que fazem referência aos reis de Israel, Salomão e Davi. Terminada a leitura, Bolsonaro ouve com ar circunspecto que aquelas passagens bíblicas se aplicam a ele e atestam que sua eleição para a Presidência do Brasil conferiu-lhe, além das obrigações constitucionais, missão divina sintetizada na ideia vaga de libertar o país do mal. Uma ideia que, em si, já é um mal.

O universo evangélico é composto por três segmentos: protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais. A cultura evangélica herdou dos protestantes históricos o sentimento típico das minorias religiosas: “somos poucos, mas melhores”; e, das práticas pentecostais e neopentecostais, o espírito triunfalista: “somos menores, mas podemos conquistar o poder e, então, chegaremos à condição de maioria”. Bolsonaro incorporou integralmente tais sentimentos e ideias e venceu, nesse segmento religioso, por 11 milhões de votos o seu adversário no segundo turno das eleições de 2018.

Enquanto o CEP de Jair Bolsonaro for o do Palácio da Alvorada, haverá sempre um evangélico recitando textos do Antigo Testamento para encorajá-lo na sua missão teocrática à frente do país. É nesse imaginário moldado a partir das narrativas teocráticas do Antigo Testamento que fermenta o caldo cultural político-religioso do apoio evangélico ao bolsonarismo. Histórias do Antigo Testamento ajustam-se bem à fusão entre religião e nacionalidade.

O lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” soou bem a ouvidos acostumados com o versículo: “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor”. É na condição de presidente da República que Bolsonaro comparece a cultos, reúne-se com pastores e afirma que “o Estado é laico, mas o povo é cristão” —e, por isso, é necessário “um ministro terrivelmente evangélico” no Supremo Tribunal Federal, embora tenha sido mais urgente nomear um ministro que não jogue no time da Lava Jato.

Por caminhos tortuosos, o Ocidente cristão separou Igreja de Estado, assim como separou religião e nacionalidade; e o fez, em grande parte, sob a inspiração das palavras do próprio Cristo: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. É preciso rechaçar visões políticas que deságuem em qualquer tipo de teocracia. Na leitura do Antigo Testamento, não se deve buscar inspiração para a invenção de uma teocracia tupiniquim sob o tosco argumento de que cristãos são maioria na sociedade brasileira e, por isso, seu estilo de vida, contando com a simpatia do presidente de plantão, deva prevalecer sobre os demais.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, em culto em ação de graças pelo aniversário do pastor Wellington Bezerra da Costa, líder das Assembleias de Deus no Brasil - Marcos Corrêa/PR

Cristãos numa sociedade democrática, como eleitores ou candidatos a cargos públicos, oferecem bom testemunho do Evangelho quando lutam pela justiça, e não quando pregam sua moralidade religiosa.

Teocracias estão completamente superadas sob o ponto de vista da teologia cristã e da experiência política moderna. Porém, se cristãos não encontram respaldo no Antigo Testamento para sustentar combinações tóxicas entre fé e política, não faltarão, principalmente nos profetas, palavras de encorajamento à busca da justiça na vida pessoal e política: “Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas” (Isaías 1.17).

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