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Danilo Santos de Miranda

Com despedida de Bosi, Brasil perde um de seus mestres mais notáveis

Fica a esperança de que memória do crítico e professor possa nos orientar nos estranhos tempos atuais

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Danilo Santos de Miranda

Sociólogo, é diretor regional do Sesc-SP (Serviço Social do Comércio)

Ao descrever a existência humana como imersão permanente na cultura, sem a qual o mundo careceria de sentido, abordamos uma condição que, de tão cotidiana, guarda certo mistério.

Uma imagem pode nos ajudar: a cultura como uma espécie de texto escrito coletivamente, movido por continuidades e rupturas, oscilando entre capítulos de pertencimento e golpes de inventividade. Nesse contexto, as pessoas que assumem o papel de mestres são precisamente aquelas que impulsionam o texto a continuar sua narrativa histórica.

O Brasil perde, com a despedida de Alfredo Bosi nesta quarta (7), vítima de Covid-19, um de seus mais notáveis professores. Profundo conhecedor da literatura brasileira, ajudou a consolidar por aqui uma tradição de pensadores cuja perspicácia de análise formal caminha "pari passu", isto é, a passo igual, com a sagaz leitura do mundo político e social.

O contexto nacional, no qual a educação vê-se constantemente obrigada a reafirmar sua relevância —fato que julgávamos tão evidente!—, solicita neste momento uma cuidadosa reverência a esse intelectual paulista. Isso se deve, em boa parte, à dimensão emblemática de sua trajetória, na medida em que Bosi pertence a uma geração de pensadores que, a partir de seus saberes específicos, conectaram duas temporalidades.

Numa ponta, reluz o Brasil do modernismo dos anos 1920 e dos grandes intérpretes das décadas de 1930 e 1940, notadamente Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, que estabeleceram os alicerces para a compreensão de nossa contraditória modernização.

Na outra ponta, temos a nação do século 21, ainda na busca por, enfim, assentar sua experiência democrática, que reconhece a diversidade cultural como patrimônio, mas vacila em superar a mácula da desigualdade —mácula que tem no âmbito educativo um de seus mais enfáticos sintomas.

Entre esses dois Brasis, uma plêiade de indivíduos maturou reflexões capazes de articular polaridades como criatividade e dependência, popular e erudito, cultura e sociedade, entre outras. Alfredo Bosi ocupou lugar de destaque nessa ágora, ativando seus conhecimentos sobre a tradição europeia, em especial italiana, para identificar as peculiaridades da literatura que por aqui foi produzida, sublinhando suas articulações com o panorama mundial.

Soma-se a isso sua atuação na esfera educativa, em que a sofisticação intelectual mesclou-se à delicadeza no trato com movimentos estéticos, escritores, livros e, principalmente, com alunos. Seu papel na formação dos indivíduos sempre revelou o empenho em pensar a prática literária atrelada às dinâmicas históricas, sem recuar diante do desafio central num país pleno de vulnerabilidades: estimular a leitura sobretudo junto aos jovens.

Complementam-se, assim, as facetas de pensador e educador, na tessitura de uma escrita que se desenrolou em tempo ampliado, necessariamente complexo, generosamente dialogado.

Eu fui um dos tantos jovens cujos caminhos viram-se habitados pela sutil pedagogia do professor Bosi. De tais lembranças, guardo a impressão de uma presença delicada que se harmonizava ao rigor analítico e à valorização do espírito crítico.

Ter vivenciado intensamente tais encontros, num momento fundamental de minha formação, ajudou-me a compreender que o cultivo da literatura e das artes pode, quando bem conduzido, transmutar-se em leitura do mundo.

E foi imerso em semelhante atmosfera, na qual conviviam profundidade de pensamento e amplitude de horizontes, que o revi em diferentes momentos da minha vida. Os espaços do Sesc foram cenário para boa parte desses reencontros, nos quais Bosi atualizava, com reputada elegância, sua vocação para o ensino. De uma maneira peculiar, reforçava a convicção de que a potência da educação reside no espalhamento, transbordando os ambientes especializados e alcançando as pessoas em seus cotidianos.

Mestre de inúmeros cidadãos que constroem o nosso presente, Alfredo Bosi fez de seu itinerário público um exemplo de comprometimento com a realidade brasileira, incluindo suas interfaces político-econômicas.

Lição exemplar em vida, fica a esperança de que sua memória possa nos orientar nos estranhos tempos atuais, em que aquilo que parece óbvio —a centralidade da cultura na experiência humana— ganha ares de inusitada revelação.

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