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Paulo Lotufo

Comorbidade é erro conceitual com impacto indesejado na vacinação

Termo pode e deve ser abandonado nos casos agudos de Covid-19

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Paulo Lotufo

Epidemiologista e professor titular de clínica médica da Faculdade de Medicina da USP

Critérios de vacinação para a Covid-19 foram adotados pelo Programa Nacional de Imunização pela escassez da vacina. A priorização por idade ou por segmentos da sociedade é motivo de debate, mas ambos critérios permitem comprovação. No entanto, o termo “comorbidade” admite interpretações variadas, o que motivou reportagens na imprensa de situações presumivelmente fraudulentas de comprovação.

Comorbidade é termo médico para condições clínicas simultâneas, mas independentes (câncer de mama e artrite), ou então concomitantes devido a agente único (fumante com doença coronariana e bronquite crônica), ou, ainda, pelos efeitos tardios de uma mesma doença (diabetes com doença renal e neuropatia).

Em paralelo ao conceito de comorbidade, há o conceito de fator de risco para doenças cardiovasculares (hipertensão, colesterol alto, diabetes, tabagismo) ou câncer de pulmão (tabagismo) —que não são doenças em sentido estrito, mas condições que aumentam a probabilidade de uma doença chamada de crônica. Doenças agudas infecciosas em condições não epidêmicas têm fatores de risco, como doença falciforme e pneumonia ou tabagismo e gripe. Já em uma pandemia como a da Covid-19, os conceitos de fator de risco ou comorbidade não se aplicam.

O termo “comorbidade” ganhou popularidade quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou, em 25 de fevereiro de 2020, relatório com frase que ganhou apelo antes mesmo da declaração de pandemia: “idosos e pessoas com doenças preexistentes [como hipertensão, doença cardíaca ou diabetes] parecem ser mais vulneráveis”.

Essa conclusão da OMS veio de Wuhan, na China, somente com estudos de pessoas internadas, obviamente mais graves e com risco maior de apresentarem outras doenças prévias ou até mesmo diagnosticadas na internação. Essa preocupação poderia ser vista como mais uma gota no imenso tsunami que se avizinhava, mas, ao contrário, tornou-se a pedra de toque na condução da pandemia em quase todo o mundo, incluindo o Brasil.

O primeiro impacto foi a proposta de isolamento vertical defendida por governos negacionistas, que se transformou na decisão de quem poderia ser excluído ou não de trabalhos presenciais. Mesmo equivocada, a proposta de isolamento vertical do que seriam “grupos de risco ou com comorbidade” atingiu quase todos os países para definir critérios de prioridade para a imunização.

A listagem do PNI de “comorbidades” traz confusão ao listar ao mesmo tempo diabetes e indivíduos transplantados. O diagnóstico de diabetes pode ser um único exame alterado de glicose no plasma, sem significado maior. Já a pessoa com diabetes desde a infância, cuja evolução levou a transplante renal, tem documentação comprovando a condição mórbida. Outras condições listadas são de diagnóstico difícil na prática clínica (hipertensão), e com certeza se prestarão a atestados médicos cuja veracidade nunca poderá ser confirmada. Além disso, mesmo verídica, a prevalência de diabetes e hipertensão é elevada o suficiente para ocupar toda a disponibilidade de vacinas.

O raciocínio no quesito “comorbidade” é o inverso do apresentado como critério de prioridade para a vacinação. Em vez de priorizar situações que levariam à Covid, o mais adequado é identificar quais doenças teriam sua história natural abreviada caso o portador dessa enfermidade se infecte pelo novo coronavírus.

Nesses termos, a comprovação se torna exequível porque são situações onde há registro prévio em algum sistema do SUS. Exemplificando: pacientes em diálise, tratamento quimioterápico ou radioterápico para câncer, transplantados ou na fila para transplante (rim e fígado, principalmente) —doenças ou medicamentos que reduzem a imunidade já estão identificados nos sistemas de pagamento do SUS. Síndrome de Down e anemia falciforme são facilmente comprovadas.

Assim, a prioridade é para quem, por ser portador de doença crônica, mas não fator de risco, poderá ter probabilidade maior de internação ou de morte. O termo “comorbidade” pode e deve ser abandonado nos casos agudos de Covid-19.

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