Falar da estátua de um bandeirante paulista em chamas numa das avenidas de São Paulo pode representar nada ou pode dizer muito. Esse cuidado no olhar é o que diferencia as interpretações que se tenta dar ao fato que, nos últimos dias, foram impulsionadas discussões sobre a história da exploração de riquezas e as narrativas acerca do genocídio de povos originários e escravizados nos tempos de Brasil colônia.
O fogo aos pés da representação simbólica do "desbravador" Borba Gato reacendeu seu passado, como não poderia deixar de ser: um ambicioso desmedido, que viu no ouro e nas pedras preciosas seu futuro e sua razão de viver, ao custo do sangue de grupos que atravessaram seu caminho e o de tantos outros ditos “exploradores dos sertões” —responsáveis por alargar as fronteiras coloniais e garantir a supremacia portuguesa sobre uma vasta região “inexplorada” do Brasil de então.
Como todas as figuras históricas marcadas pela ambição, o bandeirante se viu num jogo de poder que lhe custou uma parte, ainda que pequena, do que comporia seu cabedal: segundo relatos históricos, Borba Gato, acusado de homicídio, viu-se compelido a passar 17 anos foragido.
O processo se encerrou com a descoberta de veios de ouro por uma de suas bandeiras na região de Sabará, nas Minas Gerais. Para se livrar da perseguição que sofria e do processo, ele teria “entregado o ouro” pelo fim da condenação, numa das clássicas trapaças jurídicas da Coroa, que o transformou em autoridade judicial na região mineira até vir a falecer, aos 69 anos.
O que hoje se chama vulgarmente de "capivara" de um criminoso é o que compõe a extensa ficha criminal de Borba Gato e dos seus companheiros de empreitada sertões adentro: perseguições, assassinatos, violências sexuais, escravização, aprisionamento de índios e execuções a sangue frio.
Compreender a história requer a sua contextualização que, independentemente de ideologias e posturas pessoais, deve ser levada ao público. Nesse ponto, a estátua passa a ser menos relevante do que muitos supõem na construção da narrativa acerca deste e de tantos outros personagens.
Símbolos retratam fatos históricos, e estes não podem ser escondidos. Devem ser desnudados no seu todo. Era como se alguém resolvesse impor o fim das estátuas ou representações de Lênin, de Mao ou de Lincoln, por exemplo, sob o pretexto de “combater” o que representaram.
Ao esconder esses símbolos, certamente se prestaria um desserviço à interpretação completa da história e ao público. O que caberia, talvez no campo da racionalidade, seria produzir “ressignificações” dessas figuras —no caso brasileiro, dos bandeirantes e de outras figuras.
Sabe-se que o Paraguai tem um exemplo de releitura histórica feita com a estátua de Alfredo Stroessner, um dos ditadores mais longevos e sanguinários daquele país: ele acabou sendo “esmagado” pela estrutura de granito na reconstrução simbólica de monumento outrora em sua homenagem.
Não se deve negar, todavia, que a estátua do Borba Gato pegando fogo foi um acontecimento simbólico importante para a sociedade brasileira, em ritmo acentuado de polarização política nos últimos anos.
Expor ao público o papel do bandeirante fez toda a diferença, mas aqui cabe uma pergunta: o simples ato de se retirar a estátua dele apagaria sua participação no tempo ao qual pertenceu?
No meu entendimento, a história precisa ser contada como ela foi, e não como se quer, sem o endeusamento de figuras de passado nefasto. E, no caso, não se trata de um herói, e sim de um opressor que precisa ser marcado como tal, seja publicamente, seja nos livros, nos museus ou nas ruas.
A despeito disso, a sociedade não pode viver refém de construções sem fim de narrativas, pois é preciso construir o novo —e este certamente não está preso a um mero jogo de representações, mas aos fatos.
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