Descrição de chapéu
Érico Andrade

O desconforto da democracia

Desafio é compreender por que a formação em psicanálise permanece tão distante das pessoas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Érico Andrade

Filósofo, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e psicanalista em formação

Uma das formas mais tradicionais de se esquivar do debate público é substituindo argumentos pela adjetivação das ideias que se posicionam de modo contrário às suas. A abundância de adjetivos no texto de Marco Antonio Coutinho Jorge ("Um engenhoso estímulo à impostura", 25/1), publicado nesta Folha a respeito do artigo "Democratizar a psicanálise" (17/1), demonstra como a democracia e o debate público entre nós ainda é um desafio. "Nefasto" e "engodo" são palavras que obliteram a gravidade da questão que o texto "Democratizar a psicanálise" introduz.

De fato, há associações de psicanálise que têm uma clínica social (não todas!), mas o ponto central do meu artigo era a formação em psicanálise. Ela está muito longe de ser democrática. Basta se perguntar quantas pessoas negras estão nessas associações em relação à proporção de pessoas negras no Brasil. Quantas pessoas de baixa renda e advindas de universidades periféricas estão na formação em psicanálise nas associações de psicanálise do Brasil?

Ademais, o fato de se negociar o preço da sessão de análise esconde o patamar no qual se dá essa negociação. Os preços de partida são altos, por si só já são constrangedores, e mesmo mediante negociação, que não se aplica a todos os casos, está longe de contemplar as camadas menos privilegiadas do nosso país. Portanto, o acesso à psicanálise como um longo e singular tratamento não é algo disseminado no Brasil na forma de um atendimento para a maior parte das pessoas. Desse modo, ainda há uma necessidade de democratizar o atendimento. E a formação?

Para essa pergunta eu convido as associações de psicanálise a se questionarem sobre a quantidade de pessoas do seu quadro que são oriundas das classes mais populares e negras. Por essa razão, é no mínimo um indicador do caráter elitista da especialidade se ocupar em reafirmar o privilégio das instituições de psicanálise em determinar o que é uma formação psicanalítica quando surge a possibilidade de um curso de graduação. Se por um lado, as associações de psicanálise têm razão em alertar para a complexidade que é a formação, por outro há uma urgência para que essas entidades tenham cotas e acolham pessoas em vulnerabilidade social para a formação —e não apenas na sua clínica que, insisto, nem sempre existe.

Com isso, é importante não se cometer a confusão —exposta no texto de tréplica de Marco Antonio Coutinho Jorge— entre a pessoa do psicanalista (que pode estar em diversas ações sociais) com as instituições em cuja formação está, sim, parte privilegiada da população brasileira. Basta fazer um rápido levantamento estatístico. Parece-me que o desafio não é o de pessoalizar a psicanálise, mas levar a sério a radicalidade da questão a respeito da formação e porque ela permanece tão distante das pessoas. Sem proceder desse modo, as instituições estão fadadas a não tratar do problema porque não percebem que são parte dele.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.