Descrição de chapéu
Michael Kepp

O tabu moral de um tapa

Se alguém merece um defensor é Chris Rock, que manteve a elegância

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Michael Kepp

Jornalista norte-americano radicado há 39 anos no Brasil, é autor de ‘Tropeços nos Trópicos - Crônicas de um Gringo Brasileiro” (ed. Record) e ‘Um Pé em Cada País’ (Tomo Editorial, 2015)

Não consigo entender por que tantas pessoas tentaram justificar o tapa do ator Will Smith no comediante Chris Rock, no último Oscar, argumentando que ele estava apenas defendendo a honra de sua esposa ou dizendo que violência é violência, seja verbal ou física.

Não há equivalência moral entre agressões verbais e físicas porque elas são diferentes tanto em grau quanto em espécie. Como tal, a violência física em reação a qualquer ofensa verbal cruza uma linha moral. E isso não pode ser normalizado.

Will Smith dá um tapa na cara de Chris Rock durante a 94ª cerimônia do Oscar - Brian Snyder/Reuters

Aqueles que ficam em cima do muro —deplorando a violência, mas, mesmo assim, defendendo Smith— também não conseguem ver o contexto de seu ataque. Rock contou uma piada sobre a alopecia (queda de cabelo) da mulher dele, Jada, o que não é o mesmo que contar uma piada sobre a doença de alguém, como alegam os defensores de Smith. Alopecia não é nada mais que uma condição, provocada por genética, estresse, hormônios ou autoimunidade que afeta a aparência —e, daí, a vaidade, não a saúde.

Isso explica porque Smith riu da piada —até que Jada rolou os olhos, fazendo com que ele a defendesse. É verdade que a queda de cabelo causa mais angústia em mulheres do que em homens porque a sociedade patriarcal valoriza mais a aparência da mulher que a do homem.

Também é verdade que as mulheres negras sofrem mais dessa condição porque já enfrentam a pressão para se adequar à estética da sociedade branca dominante, levando muitas delas a alisar os cabelos. Mas nenhuma dessas verdades justifica o tapa que Rock recebeu.

É importante ver esse ataque em outro contexto. O Oscar, assim como outras premiações televisionadas nos Estados Unidos, costuma contratar comediantes para entregar os prêmios porque seu papel é tirar sarro dos atores conhecidos na plateia, em benefício de milhões de telespectadores. Assim, os membros da plateia —mesmo aqueles que, como Jada, não foram indicados para tais prêmios— sabem que há uma boa chance de que os apresentadores zombem deles. E, claro, devem vir preparados para isso.

Nesse sentido, os comediantes são como os "bobos da corte" da Inglaterra medieval, cujo papel era ridicularizar a elite monárquica, inclusive o rei, e contar verdades inconvenientes que ninguém mais podia dizer. Esse papel, junto com sua plataforma, um palco, é o motivo pelo qual os comediantes devem ter um espaço bem amplo para tirar sarro da realeza de Hollywood.

O comediante inglês Ricky Gervais, famoso por lançar os mais cáusticos insultos aos atores nesses eventos, resumiu bem quando disse: "Só porque você está ofendido não significa que está certo. Algumas pessoas se ofendem com a igualdade".

Se alguém merece um defensor é Rock, que manteve a compostura, com elegância, apesar de ter sido agredido fisicamente na frente de milhões. Ele prometeu abordar o assunto de forma séria e cômica. Mas, seja qual for a piada que ele conte sobre o tema, desde que mantenha a elegância, merecerá aplausos de pé.

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