Descrição de chapéu
André Sturm

E a solidariedade com os russos?

Milhões deles também estão em pânico, sofrendo, passando dificuldades

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

André Sturm

Cineasta, é ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo (jan.17 a jan.19)

Recentemente esta Folha publicou uma divertida reportagem sobre o principal campeonato de cães do planeta ("Baxer vence o Crufts, maior competição canina do mundo", 13/3). Critérios de avaliação, a foto do vencedor. Terminava dizendo que os organizadores, em apoio à Ucrânia, haviam vetado a participação dos inscritos da Rússia.

Fiquei pensando num criador que adora seu animal e, tendo treinado o cachorro por um ano, é impedido de participar por ter um presidente demente. Foram muitos outros casos semelhantes. Cantora russa demitida de orquestra; turnê do Bolshoi cancelada; ódio a tudo que é russo.

0
O cineasta André Sturm - Mathilde Missioneiro - 12.fev.20/Folhapress

Dirijo um streaming de filmes. Recebemos mensagens de alguns assinantes exigindo a retirada de todos os filmes russos! "O Encouraçado Potemkin", "Outubro", "Solaris", "Stalker", "Dersu Uzala" e outras pérolas do cinema russo. Se eu os retirasse, Vladimir Putin ficaria muito ofendido ou eu privaria milhares de brasileiros do acesso a obras seminais da cultura mundial? Devemos tirar das livrarias e bibliotecas as obras de Tolstói e Dostoiévski? Proibir as orquestras de tocar Tchaikovsky e Prokofiev?

Isso me fez pensar também nas experiencias que tive no ano passado ao me dispor a participar de festivais de cinema que voltavam a ocorrer de forma presencial na Europa. Nosso presidente da República tornou-se mundialmente conhecido por ser contra a vacinação. Mesmo com atraso no início, a vacinação andou rápido no país pelo empenho de muitos. Os brasileiros eram vistos na Europa como párias mundiais. Transmissores suspeitos de Covid em suas muitas cepas e variedades. Para ir ao Festival de Cannes, em julho, precisei da ajuda do Consulado da França em São Paulo, que conseguiu uma autorização especial do Ministério da Saúde!

Em agosto, a maior parte dos habitantes da Terra podia entrar na Europa livremente. Restrições seguiam para três países, um deles o Brasil. Que já tinha índices de vacinação superiores à maioria mundial. Em todas as reuniões que fiz nos eventos que participei, tinha que dedicar dez minutos a explicar que a imensa maioria dos brasileiros era a favor da vacinação e que o processo caminhava célere. "Mas e seu presidente?", eu ouvia. Mais alguns minutos explicando a diferença.

Em setembro fui para o Festival de San Sebastián, no norte da Espanha. Fiz escala na Alemanha, onde também passei pela imigração e segurança. Ao descer do avião na Espanha, com mais de 200 passageiros vindo da Alemanha, dois funcionários do aeroporto pediam o passaporte logo na saída da porta. As pessoas mostravam e seguiam. Na minha vez, ao ver o passaporte brasileiro, fui levado a uma sala fechada para fazer um exame médico. Fui o único passageiro submetido a isso. Fiquei quase uma hora isolado naquela sala, tempo necessário para fazer o teste e sair o resultado.

Não quero, claro, comparar meus infortúnios em viagens à Europa com os da terrível guerra que assola a Ucrânia. Apenas mostrar um pequeno exemplo de como não se pode confundir um povo com seu líder.

Com certeza não houve líder mais nefasto do que Adolf Hitler. Você proporia que os filmes dirigidos por Ernst Lubitsch, Fritz Lang e F. W. Murnau, dentre muitos outros gênios, fossem proibidos por eles serem alemães? Não mais leríamos Thomas Mann e Goethe? Não ouviríamos mais Bach e Beethoven?

Um dos filmes russos disponíveis no Belas Artes à la Carte é "Vá e Veja", de Elem Klimov. Um dos mais incisivos libelos contra a estupidez da guerra. Filme que deveria ser assistido pelo maior número de pessoas para que entendessem de forma mais intensa a barbárie que ocorre na Ucrânia. Perseguir artistas, esportistas, profissionais russos e proibir a difusão de sua cultura é fortalecer o discurso de Putin de que o Ocidente quer destruir a Rússia.

Vamos apoiar as sanções econômicas contra o Estado russo e seus oligarcas, que minarão o apoio ao presidente psicopata. Mas não os russos. Com certeza milhões deles estão em pânico, passando dificuldades, sofrendo por essa guerra estúpida. Alguns tentando protestar. Eles também precisam de nossa solidariedade.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.​

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.