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Gabriel Trigueiro

Particularidades do conservadorismo russo

Grupo mais radical forneceu as bases intelectuais para a invasão da Ucrânia

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Gabriel Trigueiro

Doutor em história pelo Programa de História Comparada da UFRJ, é especialista em pensamento liberal e conservador

Não é de hoje que, no mundo todo, sobretudo naquilo que antigamente a gente chamava de Ocidente, analistas tentam compreender a real natureza política do regime russo. Embora a política do país se beneficie de uma análise comparativa e global, ela precisa ser compreendida a partir de seus próprios termos e semântica. Para entender como funciona a tradição política conservadora da Rússia, tão antiga e heterogênea quanto a própria identidade nacional, é preciso trazer à luz a definição russa do que é conservadorismo, que pode ser bem diferente da utilizada por Europa e EUA.

Nesse sentido, é interessante ler "Russian Conservatism", trabalho de genealogia historiográfica de Paul Robinson publicado em 2019. Sobre os conservadores russos, Robinson argumenta que há uma linha de continuidade entre a tradição intelectual que vai de Pedro, o Grande até Vladimir Putin. O conservadorismo russo se baseia na tríade autocracia-ortodoxia-nacionalismo. Autocracia diz respeito a uma maior concentração de poder no Executivo; ortodoxia se refere à importância da Igreja Ortodoxa russa na formação da imagem nacional; e o nacionalismo utiliza alguns símbolos do país para forjar uma identidade única russa. Cada vértice dessa pirâmide alimenta o outro. Quando Constantino Pobedonostsev, jurista e conselheiro de czares, ainda no século 19, proibiu a tradução da Bíblia para o ucraniano, o seu medo refletia a percepção dos conservadores do Império Russo de então: essa tradução, feita no idioma local, poderia fortalecer a identidade nacional ucraniana e gerar sabe lá que sublevações e anarquia.

As bandeiras soviética (à esq.) e russa tremulam sob o Kremlin em 18 de dezembro de 1991; as bandeiras soviéticas foram retiradas em 31 de dezembro, pela última vez, para serem substituídas pelas russas, marcando o fim da União Soviética - Alain-Pierre Hovasse - 18.dez.91/AFP

Com o colapso da União Soviética e do regime comunista, o conservadorismo russo se dividiu em duas correntes principais. A primeira é favorável ao status quo pós-soviético: participação simbiótica do Estado em uma economia nominalmente de mercado; desigualdade social galopante; alto fluxo migratório; e a ideia de que é razoável ceder frações da soberania nacional russa ao direito internacional, a fim de permanecer em uma economia capitalista global. A segunda corrente é crítica ao status quo e apela aos valores e tradições nacionais: nessa toada, a experiência soviética é lida menos como comunismo e mais como expressão de orgulho cívico.

Essa segunda corrente classifica a soberania nacional como algo sagrado e inviolável. É esse grupo, chamado de conservadores radicais, o responsável por fornecer as bases intelectuais da invasão russa à Ucrânia. Ele se pauta por um messianismo crítico ao Ocidente, no qual a ideia vaga de Ocidente é conveniente porque permite encapsular coisas tão diferentes quanto a agenda LGBTQIA+ e a expansão da Otan no Leste Europeu. Membros dessa escola, como Aleksandr Dugin, advogam uma "destruição da hegemonia dos poderes atlânticos". Segundo Dugin, essa destruição passa pela criação de um império russo que seja global e expansionista —e que se estenda pelo norte dos Bálcãs, pela Moldávia, pelo leste e sul da Ucrânia, pelo Cáucaso, pelo leste e norte das margens do Mar Cáspio ao longo do Cazaquistão e Turcomenistão, pela Ásia Central, chegando até a Mongólia.

Muitas vezes se afirma que os conservadores russos são antiocidentais: o que é uma simplificação. Conservadores liberais e a oposição aristocrática às Grandes Reformas de Alexandre 2º se viam como parte de uma ampla cultura europeia, e mesmo da tal da "civilização ocidental". Eslavófilos, durante o século 19, acreditavam que a missão histórica russa era precisamente a de salvar a Europa de si mesma.

O conservadorismo russo não é, nem nunca foi, antiocidental em sentido estrito. Ele é, isto sim, contrário à aplicação de uma ideia de liberdade que é basicamente ocidental sem que sejam levadas em consideração uma perspectiva histórica e política da Rússia. É um embate entre particularismo e universalismo. Qualquer análise do que agora está em curso na política da Rússia que não leve isso em consideração é apenas barulho: baseado em projeções ideológicas, primarismos políticos e meias verdades.

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