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Flávio de Leão Bastos Pereira

Civilização e barbárie

Crime cometido por policiais rodoviários não é caso pontual, mas sistêmico

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Flávio de Leão Bastos Pereira

Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é especialista em genocídios pelo Instituto Zoryan e Universidade de Toronto; pesquisador da Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP)

O professor Gregor Stanton, da organização Genocide Watch, alerta que o caminho para que uma sociedade alcance estágios avançados na execução do crime de genocídio passa por dez etapas: classificação, simbolização, discriminação, desumanização, organização, polarização, preparação, persecução, extermínio e negacionismo. O Brasil se encontra diante de algumas delas nesse processo de crime internacional.

A sistematização pode ser exemplificada com o desrespeito em relação às decisões do Poder Judiciário, na eliminação da disciplina de direitos humanos nos cursos de formação de agentes policiais e na rotina de chacinas cometidas por forças do Estado, como no Jacarezinho e na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro.

Ação da Polícia Rodoviária Federal que causou a morte de Genivaldo Jesus dos Santos, 38
Ação de agentes da Polícia Rodoviária Federal em Sergipe que levou à morte de Genivaldo de Jesus Santos - Divulgação

A desumanização chega agora a níveis assustadores com o assassinato de um homem negro e com deficiência mental em um veículo policial convertido em câmara de gás. Prática que não parece um erro casual, mas sim um modus operandi, ensinada por "instrutor" em cursos preparatórios para agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Aliás, toda sistematização genocida é precedida de "experimentos" ou "descobertas acidentais". As câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau resultaram da experiência obtida pelo Projeto Aktion 4, que usava monóxido de carbono para eliminar exatamente deficientes físicos e mentais em centros de extermínio situados nas cidades de Grafeneck, Brandenburg, Hartheim, Sonnenstein, Bernburg e Hadamar. Cerca de 275 mil vítimas com deficiências foram exterminadas, muitas em veículos convertidos em câmaras de gás móveis.

O regime nazista usou vans como câmaras de gás em 1940 na região de Kochanowka, na Polônia, quando trancaram crianças com doenças mentais nesses veículos, sufocando-as até a morte.

Em "burocrático" relatório de 16 de maio de 1942, o SS August Becker registrou, sobre as câmaras de gás móveis, que a gaseificação não era realizada corretamente, uma vez que as pessoas a serem executadas morriam sufocadas e não "cochilavam", como planejado. Aconselhava que as alavancas fossem devidamente ajustadas para que a morte chegasse mais rápido e os prisioneiros adormecessem "pacificamente", com a vantagem de que as "faces distorcidas e os excrementos" não mais ocorreriam.

A Convenção de Nova York (2007), promulgada no Brasil, estabelece que o Estado deve promover a capacitação das equipes e profissionais que atuem junto às pessoas com deficiências.

A primeira condenação internacional do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2006, se deu em razão de tortura e assassinato, em clínica psiquiátrica, de Damião Ximenes Lopes, jovem acometido por enfermidade mental.

A barbárie cometida por agentes da PRF não é um caso pontual, mas sistêmico. A sociedade não pode agir como se estivesse diante de apenas mais um crime grave. Caso contrário, estaremos definitivamente à beira de um colapso civilizacional no país.

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