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Cidinha da Silva

'Medida Provisória': agora falamos nós

Somos matéria fílmica válida para virarmos personagens e nos representarmos

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Cidinha da Silva

Escritora, é autora de “Um Exu em Nova York” (ed. Pallas) e “#Parem de nos matar!” (ed. Jandaíra), entre outros

‘Medida Provisória’ é um filme que me pega como criadora, ou seja, me pergunto quais seriam as minhas alternativas para eventuais soluções fílmicas que não me agradaram. As respostas, não raro, são turvas, porque uma obra de arte pautada pela recepção é um centro de força que recebe flechas desferidas pelas indústrias cinematográfica e cultural; pela compreensão e alcance dos sujeitos diversos envolvidos na concepção e gestão do trabalho, entre tantas outras. E nos colocamos no fio da navalha entre o que queremos e podemos (ou não) dizer e o que conseguimos realizar.

A fotografia de "Medida Provisória’ é impecável. A direção é segura e tem a marca de Lázaro Ramos, que a gente vai aprendendo a detectar nos trabalhos multimídia que ele constrói: o humor, a ironia, a acidez, a escolha da palavra adequada, tudo costurado pela rapidez de raciocínio para definir a hora certa de cada coisa. A trilha sonora impacta e seduz. As atrizes e atores, gostemos ou não de suas atuações, de um modo geral convencem, principalmente nos diálogos da primeira metade do filme, nos quais a atuação de Seu Jorge alivia uma tensão quase insuportável. Um ou outro ator mais conhecido parece interpretar a si mesmo. Mas, e daí? Somos matéria fílmica válida para nos tornarmos personagens, para nos representarmos, poderiam me responder e, em fim de contas, eu concordaria.

Dois aspectos me agradaram muito na obra: o primeiro, a não passividade das personagens melaninadas. Todas elas reagem à violência extrema e o fazem utilizando a força física: a enfermeira, os capoeiristas, Antônio, Capitu em dois momentos, o porteiro (Augusto Pompeo), André, mesmo que isso lhe custe a vida que, afinal, poderia ser-lhe roubada mesmo não reagindo. Eles nos matam como se fôssemos insetos.

O segundo aspecto, a perene chamada de atenção para que não descuidemos dos ardis do racismo, para que não menosprezemos a eficácia da engrenagem de moer gente negra azeitada pela branquitude empenhada na defesa dos próprios privilégios em toda e qualquer situação.

Problematizo três cenas em especial: a primeira, a catarse de Capitu, algo que me soou como "as mulheres negras não podem falar em lugar nenhum, mas aqui, neste filme, elas podem". E ela falou e falou. Na volta para casa, presenciei no metrô dois casais de adolescentes discutindo o filme, e a menina negra do grupo dizia, inflamada: "A Taís [Araújo] acertou em cheio, a gente está muito cansada mesmo, a gente vai falar e vocês vão ouvir". Então, funcionou. A recepção que mais interessa foi atingida.

A segunda cena, uma abordagem rasa dos dilemas vividos por uma mulher premida pelo fantasma do aborto. Em que pese a obra não ser uma proposta de cartilha "feminista raiz", o enfoque epitelial do problema acaba por reforçar um discurso moralista de que a mulher tem uma decisão simples a tomar: "aborta ou mantém a esperança".

Na terceira cena, inquietou-me a insinuada equivalência entre a morte de um homem negro hétero, vitimado pela crueldade branca, e a morte de um homem gay branco, abatido pelos excessos negros. Lembrou-me um hit do cinema nos anos 2000, "Crash: No Limite", e seus impasses cotidianos que funcionavam como apaziguadores de consciências atormentadas pela necessidade de respeitar e valorizar a subjetividade humana em seus diversos matizes.

Fica o grande desafio da arte, que nos move ao acordar e, ao dormir, nos coloca em movimento: como abordar os temas que nos são caros e, ao mesmo tempo, garantir a verossimilhança da história? Como construir uma heroína médica que leve insulina e outros cuidados de emergência para o amado, um homem magro e jovem em crise de diabetes, há dias sem comer, sem beber e sem medicação? Afinal, os beijos doces de Capitu, infelizmente, não poderiam reequilibrar a glicose de Antônio.

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