Ainda vigoravam os "anos de chumbo" quando começou a ser formatada, no Brasil, uma memória social crítica à ditadura.
À medida que os militares iam consolidando sua face autoritária e descartando apoiadores de ocasião, desenhava-se, a partir de setores liberais que outrora os apoiaram, um quadro que, apesar de seguir relativizando a ruptura institucional de 31 de março de 1964, condenava o fechamento do regime, a censura e sobretudo a tortura nos quartéis.
Desde a viragem que deu início a um ciclo de vitórias eleitorais de lideranças perseguidas pela ditadura, com Fernando Henrique Cardoso, essa memória crítica ao regime passou a ser incorporada a políticas de Estado. E importantes iniciativas foram gestadas, como a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos; o livro-relatório "Direito à Memória e à Verdade"; o projeto Memórias Reveladas; e, claro, a Comissão Nacional da Verdade.
Como se sabe, a CNV deu tração a um projeto até então tímido de revisionismo ideológico. As ruas, numa espécie de novo surto anticomunista, voltaram a exibir pedidos de outro golpe militar. E, em crise com o pacto social de 1988, o Brasil escolheu para governá-lo justamente um representante daquele projeto que sepultou a democracia em 1964.
Mas não qualquer representante. Jair Bolsonaro pode ser considerado o mais radical polo tensionador à direita da memória sobre a ditadura. Diferentemente de seus colegas, que em geral adotaram uma postura comedida diante da ascensão desse aparente consenso crítico, Bolsonaro usou a democracia, como parlamentar, para reclamar que os militares mataram pouco e zombar de torturados e familiares de desaparecidos.
Quando, em sessão da Câmara em 2016, votou a favor do impeachment e homenageou o coronel Brilhante Ustra, primeiro militar reconhecido pela Justiça brasileira como torturador, Bolsonaro mencionou que Ustra seria "o pavor de Dilma Rousseff".
Na Presidência, Bolsonaro fez o que pôde para debelar essa memória crítica ao regime: barrou homenagens a vítimas; nomeou negacionistas contumazes em postos estratégicos; legitimou projetos enviesados de história pública; lutou pela extinção da Comissão de Mortos e Desaparecidos; e, ano após ano, através do Ministério da Defesa, insiste na estapafúrdia tese de que os militares de 1964 salvaram o Brasil do comunismo.
A própria eleição de Bolsonaro já é um sintoma da fragilidade desse consenso crítico à ditadura, que talvez tenha vigorado mais nos circuitos acadêmicos do que propriamente na sociedade civil. Com alguma segurança, é razoável supor que uma nação com sólida cultura democrática e rechaço intransigente ao estado de exceção jamais escolheria um apologista da tortura para dirigir seus rumos.
Muito se diz, com razão, sobre a oportunidade que o Brasil terá, em outubro, de revisar a decisão tomada em 2018. Essa também é uma chance de olhar com mais atenção para o passado.
Aos que argumentam que se trata apenas de memória, e que o passado ao museu pertence, basta olhar para o presente. Nunca houve tantos militares da ativa no governo e nunca se ameaçou, com tanta desfaçatez, uma nova escalada golpista. Paranoico, o governo abriu fogo contra quase todos os órgãos de Estado que atuam com alguma independência.
Esse é um governo que também protesta contra as limitações impostas pelo Judiciário às liberdades individuais, mas não perde a oportunidade de acioná-lo para calar críticos dos mais inofensivos; que tem graves problemas com transparência; que culpa os próprios assassinados em uma Amazônia a cada dia mais milicianizada; e que chama de "marginal" um brasileiro executado numa câmara de gás.
Se é preciso superar o passado da ditadura, é condição anterior e urgente conhecê-lo. Assim como é para ontem um consenso social consistente de condenação ao autoritarismo militar. Outubro é logo ali, mas é também lá atrás.
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