O Supremo Tribunal Federal vai decidir a validade do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil (CC), que determina ser obrigatório o regime de separação de bens para o cônjuge ou companheiro maior de 70 anos.
A norma é de constitucionalidade duvidosa, pois retirou dos nubentes ou companheiros sua autonomia, ferindo dispositivo da Constituição Federal, especialmente a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e o princípio de igualdade (art. 5º, I).
Não se pode admitir que o maior de 70 anos não tenha capacidade e autonomia para decidir qual o regime a ser aplicado por ocasião de suas núpcias ou do estabelecimento de sua união estável, sob pena de violar preceitos sensíveis da Constituição, em especial o da dignidade da pessoa humana, um fundamento basilar da República brasileira.
O recurso extraordinário foi submetido a regime da repercussão geral, na qual o ministro Luís Roberto Barroso declarou que "possui caráter constitucional a controvérsia acerca da validade do art. 1.641, II, do CC/02". O artigo em questão jamais poderia restringir a autonomia da vontade a título de proteger a pessoa do idoso ou de seus herdeiros.
Necessário esclarecer que a norma violou, ainda, o art. 3º, IV, da Constituição, que prescreve que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Não há limite temporal ou circunstancial para que o idoso possa, em seu testamento, dispor sobre a parte disponível de seus bens. Assim, se ele pode testar a quem desejar 50% dos seus bens, não seria razoável a lei infraconstitucional impor obrigatoriamente o regime de separação apenas e tão somente em razão da idade. Ora, estamos diante de norma invalidada, retrógrada, sem qualquer fundamento na Carta —que é o plano de validade de todo o arcabouço legislativo nacional.
Apenas metade dos bens da herança pertencem aos herdeiros, consoante prescreve o art. 1.846 do CC. Assim, existindo apenas um herdeiro do maior de 70 anos, o cônjuge ou companheiro jamais avançaria na legítima, que é protegida pela referida norma. Como se vê, sequer o art. 1.641, II, tem compatibilidade sistêmica com o Código Civil.
Este artigo, podemos afirmar, é um dinossauro dentro do arcabouço legislativo do Brasil. Ao impor o regime de separação obrigatória ao maior de 70 anos, o art. 1641, II, violou a Constituição Federal, transformando-a num mero papel com tinta. Nesse aspecto, foi feliz a observação do ministro Luís Roberto Barroso quando declarou: "Argumenta-se que, ao presumir de forma absoluta a incapacidade de maiores de 70 anos para decidir sobre o regime patrimonial aplicável às uniões familiares que contraírem, a regra interfere na autonomia desses indivíduos, sendo esse um aspecto que integra o conteúdo mínimo da dignidade humana (art. 1º, III, da Constituição).
Levando-se em conta a elevação da expectativa de vida da população nas últimas décadas, a aplicação dessa regra potencialmente impediria a tomada de decisões por indivíduos plenamente conscientes de suas implicações. Assim, estariam em tensão os dispositivos que preveem a vedação à discriminação contra idosos, a proteção às uniões estáveis e o dever de amparo às pessoas idosas (arts. 3º, IV, 226, § 3º, e 230 da Constituição).
Diante destes aspectos, conclui-se que o art. 1641, II, do Código Civil, é norma inconstitucional e inválida, pois ofendeu os arts. 1º, III, 3º, IV, 5º, I, X, LIV, e 226, § 3º, 230 da CF.
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