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Alexandre Filordi

Pós-fascismo e limpeza partidária no Brasil

Não estamos perante meros atos de violência, intolerância ou mal-entendidos

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Alexandre Filordi

Doutor em filosofia (USP) e em educação (Unicamp), é pesquisador do CNPq, professor permanente do PPGE (Programa de Pós-Graduação em Educação) da Unifesp e coordenador do GT de Filosofia da Educação da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação)

O historiador italiano Enzo Traverso denominou pós-fascismo a convergência de uma corrente particular de ideologias e de ações pautadas por giros autoritários. Diferentemente do fascismo como feixe —"fascio"— organizado politicamente, o pós-fascismo atua de forma "impolítica", isto é, nos vácuos gerados pela falta de participação democrática na própria vida pública e nos laxismos do cumprimento dos parâmetros legais. "Impolítica" não quer dizer ausência da maneira política de se agir, mas o uso político de coalizões conservadoras, fundamentalistas e de extrema direita, fiadas na emoção e na manipulação da verdade. Sua estratégia é a de alucinar, conturbar e chocar as tratativas políticas pautadas por normas, regras, princípios constitucionais e democráticos.

O pós-fascismo é uma espécie de tênia autoritária que subiu para o cérebro da democracia. Aproveitando-se das crises de valores e das inseguranças sociais oriundas da concertação neoliberal, o pós-fascismo se inoculou na governamentalidade, na distribuição concreta e simbólica do poder para desacreditar a autonomia dos poderes de Estado, as deliberações coletivas, o diálogo político, a razão científica, as redes de proteção social, as minorias etc.

Nenhuma espécie de debate político racional, crítico ou matizado tem lugar no pós-fascismo, daí a função importante das fake news: agenciar o autoengano e ser viés de confirmação. Arraigados às máquinas de poder que tentam controlar, a velha limpeza étnica do nazifascismo cede lugar, no arcabouço impolítico, às estratégias de limpeza partidária. Recentemente, de Moa do Katendê à Marielle Franco; de Marcelo Arruda e Benedito Cardoso dos Santos, ambos assassinados pela ira "impolítica" do pós-fascismo, até a deputada estadual mineira Andréia de Jesus —ameaçada recentemente de morte— emergem não como casos fortuitos, exceções minguadas ou efeitos colaterais de radicalidade política.

Atualmente, o pós-fascismo brasileiro tem no bolsonarismo o seu representante majoritário, mas não exclusivo. Ele extrapolou a identificação com um indivíduo e se dissipou em formas de viver e de desejar extremamente aviltantes, violentas e eivadas de linchamento moral. O sonho de um golpe consumado é a solução final ansiada para a consagração da limpeza partidária.

Note-se bem: não é acabar com todos os partidos, como nos regimes totalitários clássicos, mas aniquilar com aqueles que não ressoam o hino e os símbolos da adesão pós-fascista. Contudo, não são apenas partidos que giram em torno da órbita da limpeza partidária. Quaisquer divergentes do pós-fascismo também precisam ser extirpados: jornalistas, intelectuais, professores, pesquisadores, líderes comunitários, militantes, povos originários, cidadãos etc.

Combater a limpeza partidária é urgente. Para tanto, precisamos começar a melhor calibrar a nomeação do que ocorre no Brasil. Do contrário, seguiremos a repetir vocábulos cansados, sem compreender bem o que se passa. Não estamos perante meros atos de violência, intolerância ou mal-entendidos. Somos atravessados pela invenção delirante de inimigos que precisam ser combatidos e extirpados para dar passagem à banda pós-fascista. No imaginário coletivo desse rebanho, os "outros-partidários" não podem existir; só devem existir pessoas que deveriam ser como "nós", e cujo crime é não o serem.

Nestas eleições, não estão em jogo apenas votos em candidatos "x", "y" ou "z", mas um verdadeiro ato de cessação dos avanços pós-fascistas no Brasil, bem como a afirmação da política democrática e de Estado de Direito. O voto também pode ser um vermífugo contra a tênia pós-fascista, com sua limpeza partidária.

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