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Eugênio Aragão

Como devolver a democracia às Forças Armadas

Mudança de postura só será possível com reexame da doutrina militar

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Eugênio Aragão

Advogado, é ex-ministro da Justiça (mar. a mai.2016, governo Dilma)

Democracia e militares têm naturalmente uma relação de tensões. Enquanto a primeira pressupõe diálogo horizontal, entre locutores igualmente legítimos, os segundos se comunicam num discurso hierárquico, vertical; portanto, entre quem manda e quem é mandado.

Mas a democracia precisa dos militares, e os militares precisam da democracia. Para controlar essas tensões, o poder civil que governa a democracia precisa manter as Forças Armadas longe do centro de decisões políticas. Elas, que exercem potencialmente a forma mais extrema do monopólio de violência do Estado, precisam estar submetidas politicamente ao poder civil, de modo a só serem empregadas, por ordem do comando civil, em emergências que colocam em risco o próprio Estado, mas jamais podem se imiscuir no processo rotineiro de tomada de decisões que afetam a vida da nação.

É a democracia que legitima o uso extremo da força para a defesa da integridade territorial e os interesses soberanos do Estado. A força sem democracia é agressora, e a história passada e recente está cheia de exemplos para servirem de alerta aos amantes da paz, da justiça e da prosperidade. Ao mesmo tempo, é a força que garante o Estado democrático quando é agredido em conflitos que põem em xeque sua soberania. O convívio entre a força e a democracia tem que ser de tutela daquela por esta última.

Infelizmente, no nosso país, esses papéis não parecem estar claros. Nos últimos quatro anos, houve manipulação nas Forças Armadas para servirem de legitimação de um governo que desrespeitou as instituições e desmontou a capacidade do Estado de prover serviços essenciais para a população. E ficou visível que setores do estamento militar, cevados com um tratamento pródigo de facilidades, gostaram desse papel. Milhares foram chamados a ocupar indevidamente cargos e funções de gestão governamental, numa relação promíscua entre as Forças Armadas e o poder civil.

O resultado dessa inusual imiscuição do monopólio extremo de violência na rotina governamental não foi bom. Quem maneja armas não é necessariamente bom gestor, ainda mais quando lhe falta a sensibilidade política para o manejo das fragilidades da sociedade.

Restaurada a normalidade institucional orientada pelo programa constitucional, há que se devolver os militares a seu papel profissional, destituindo-os da capacidade de tutelar o discurso político. Trata-se de tarefa das mais complicadas, mas necessária para afastarmos o risco de retrocessos autoritários na vida da nação.

Esse esforço foi empreendido nos governos progressistas de 2003 a 2016. Houve intenso programa para modernizar e reequipar as Forças Armadas e envolvê-las em missões internacionais de paz para aprenderem com seus homólogos democráticos a forma de convívio com o poder civil. Houve, também, busca de mudança na formação dos oficiais com instrução em direito internacional humanitário, o viés dos direitos humanos nos conflitos armados. Tratou-se de prestigiar e melhor remunerar os atores da caserna.

Mas isso, parece, pouco serviu para estancar tendências autoritárias despertadas com a reação à Comissão Nacional da Verdade e externadas com o apoio ao golpe que destituiu a presidenta legitimamente eleita, Dilma Rousseff (PT). A insistência na recusa em reconhecer os erros do passado parece atrapalhar a adequação futura das Forças Armadas a seu papel numa democracia.

É preciso reconhecer que uma mudança de postura só se dará com a revisão da doutrina militar, o programa-fonte das Forças Armadas, intocado desde a democratização civil de 1985. Essa revisão deverá ser objeto de intenso debate legislativo. A sociedade precisa ter claro que tipo de Forças Armadas deseja e, se necessário, induzir a troca de guarda no seu comando-geral. Novos critérios devem inspirar a promoção ao generalato, longe do "business as usual" que tem marcado o período pós-constitucional, por medo de melindrar o estamento militar. São necessárias inteligência e coragem para esse passo, sem o qual o poder civil se manterá refém dos humores das casernas e acuado por discursos que sugerem sua tutela pelas armas.

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