Descrição de chapéu
Daniela Osvald Ramos e Filipe Vilicic

Jornalismo deve ir além do 'dar um Google'

Mídia tradicional passa à margem do que ocorre nas profundezas da internet

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Daniela Osvald Ramos

Professora doutora no Departamento de Comunicações e Artes na Escola de Comunicações e Artes e na Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM/ECA-USP)

Filipe Vilicic

Jornalista, é autor, entre outros, de “O Clique de 1 Bilhão de Dólares” (Intrínseca) e “O Clube dos Youtubers” (Gutenberg)

Há um submundo na internet que serve de território livre para crimes variados, incluindo a disseminação de discursos sexistas, racistas e xenófobos que levam até a atos terroristas. É o caso do jovem de 16 anos que, em 25 de novembro, atacou duas escolas em Aracruz (ES), assassinando quatro, após ser contaminado por narrativas de ódio com as quais teve contato via internet —e ele alega ter recorrido também à rede para aprender a manipular armas.

Em trabalho apresentado no congresso Alcar Sudeste 2022, na USP, no dia 1º de dezembro, notamos, pela análise de casos noticiados por jornalistas brasileiros desde 2016, o quanto veículos de imprensa demonstram dificuldade em detectar, apurar sobre e relatar fatos germinados nos ambientes mais obscuros do online. Em alusão à antropóloga Crystal Abidin, chamamos essas profundidades da rede de "abaixo do radar". Uma área praticamente imperceptível aos esforços da imprensa tradicional.

O acima do radar é a superfície da internet, na qual os dados são indexados ao Google, Facebook, Twitter. Ou seja, as informações são facilmente acessíveis. Todavia, o mundo online é como o oceano: organiza-se em camadas de profundidade, e há muito mais do que se vê na superfície. A maioria das pessoas (85%) só navega pela superfície, de snorkel. Contudo, há 550 vezes mais dados circulando na internet profunda. Só uma minoria (15%) domina as ferramentas capazes de levá-la às camadas escondidas nas profundezas, abaixo do radar.

Regiões abissais que servem de abrigo para o que há de pior, de nazistas a terroristas. São espaços que, em geral, não têm sido visíveis à abordagem usual do trabalho jornalístico no Brasil por limitações técnicas. A consequência é que fatos de amplo interesse público têm se tornado notícia com atraso.

Outro exemplo é o massacre de Suzano (SP). Em 2019, dois atiradores assassinaram oito pessoas e se suicidaram em um colégio. No primeiro dia de cobertura do fato, descobriu-se que ambos frequentavam fóruns online. Nesses ambientes, haviam anunciado os crimes seis dias antes. O mesmo aconteceu em 2011 em Realengo, no Rio de Janeiro, quando só depois se soube que os alvos preferenciais eram meninas, o que estava registrado em fóruns "abaixo do radar" da imprensa.

A movimentação na internet profunda passou despercebida pela mídia. Ninguém notaria se grupos se reunissem em praças, com armas em punho, ameaçando cometer massacres? Isso ocorre na internet.

Não se trata de exemplo isolado. A imprensa tem exibido dificuldade em detectar o que ocorre nessas profundezas da rede: articulações que envolvem disseminação de fake news e usos de bots, capazes de afetar a escolha do voto em eleições presidenciais; sites de tráfico de armas e drogas; grupos que se articulam para disseminar discursos de ódios ou mesmo organizar ataques físicos, inclusive contra repórteres.

Sugerimos que há necessidade de ampla atualização técnica dos métodos de apuração de jornalistas nos ambientes online. Ao explorarem a internet, repórteres não podem parar no "dar um Google". É preciso mergulhar mais fundo, atravessar camadas. Se necessário, com tanque de oxigênio.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.