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Márcio Monteiro Reis

Fanatismo e arrogância

Debate público brasileiro precisa se livrar dessa epidemia

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Márcio Monteiro Reis

Doutor em direito público (Uerj), é advogado e professor de direito administrativo (Ibmec/RJ)

Nos últimos anos, o debate público tem sido muito difícil no Brasil. A polarização política tem dificultado o diálogo e atiçado hostilidades, criando obstáculos ao caminho político de construção de entendimentos que levem ao enfrentamento dos verdadeiros problemas e ao desenvolvimento do país.

Essa dificuldade, em parte, vem da convicção de que quem pensa diferente é necessariamente mal-intencionado. Se defende desoneração tributária e redução da intervenção estatal na economia, só pode estar pretendendo manter os seus próprios privilégios, mesmo à custa de sacrifícios da enorme parcela da população. Se defende gratuidade de serviços públicos, sua expansão ou uma regulação mais intensa da economia, é visto como um comunista, membro de algum grupo maligno que urde um plano de dominação global para tolher as liberdades e submeter a população ao domínio dos poucos integrantes do politburo.

Comércio de toalhas e de produtos relacionados à campanha política do então candidatos à Presidência da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT) Jair Bolsonaro (PL), em São Paulo - Rubens Cavallari - 19.out.22/Folhapress

Esse pensamento contaminado pelo fanatismo, que tem se alastrado assustadoramente entre nós, divide o mundo entre o bem e o mal. Motiva suas vítimas a uma busca messiânica da salvação. Para aqueles que se veem do lado do bem, todos que pensam e agem diferente representam o mal e devem ser combatidos, quando não eliminados. Não há diálogo possível com o mal, com as forças destruidoras, voltadas a corromper e dizimar a humanidade. Deve-se reunir forças e armas para destruí-lo e, assim, salvar o mundo.

De outro lado, há a arrogância daqueles que, não sendo fanáticos, não olham os diferentes como um ser do mal a ser eliminado, mas como pobres coitados que não conseguem compreender o mundo como ele realmente é. Não enxergam o caminho que leva às soluções, o que só os iluminados conhecem. A arrogância tolhe a capacidade de autocrítica, de desafiar suas próprias certezas, a curiosidade por conhecer e compreender o diferente. As certezas absolutas e o desdém pelo conhecimento e as experiências do outro também maculam a capacidade para o diálogo.

É preciso reconhecer que a imensa maioria do povo brasileiro almeja o melhor para o país e pode, a seu modo, contribuir com a construção das políticas públicas. Contudo, em tempos de Covid-19 e tragédia sanitária, também o debate público tem sido gravemente contaminado por uma epidemia avassaladora de fanatismo e arrogância, que afasta as pessoas, dificulta o diálogo, mesmo entre familiares e amigos, e causa estragos na política nacional.

Fanatismo e arrogância impedem a constatação de que, mesmo pensando diferente e enxergando o mundo por prismas diversos, é possível encontrar consensos mínimos. No plano econômico, mesmo os liberais mais empedernidos têm admitido a necessidade de manter, ou até ampliar, programas de distribuição de renda. No governo que se findou, de orientação liberal —sem entrar no mérito de críticas quanto à gestão—, foram ampliadas as despesas com essas medidas. Por outro lado, não se vê nenhum integrante do novo governo defender estatização dos bens de produção nem a abolição da livre-iniciativa o que, de resto, afrontaria a Constituição.

Claramente não existe na sociedade brasileira atual um ambiente que permita antever grandes conquistas das forças mais à direita ou à esquerda, seja no plano econômico ou no plano dos costumes. A força que empurre excessivamente para qualquer dos lados encontrará uma resistência de força quase idêntica, que só produzirá esgarçamento do tecido social. Para permitir que o país ande para a frente será necessário buscar os consensos possíveis, fazer concessões naquilo que importe menos em troca de pequenas conquistas naquilo que importe mais. Essas pontes, em uma sociedade dividida, só podem ser construídas pelo centro.

O combate ao fanatismo e à arrogância, que contaminam as relações pessoais e políticas, poderá revelar a compatibilidade de ideias e caminhos a serem compartilhados. A divergência não desaparecerá, mas por meio do diálogo será possível antever um futuro melhor. Nossos inimigos em comum são o fanatismo e a arrogância. Se conseguirmos, a maioria de nós, combater a menor semente deles em nossos próprios espíritos, estaremos dando um passo gigantesco para a cura dessa epidemia que tem causado tanta destruição recente.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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