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Rachel Balsalobre

Lula, o Brasil de volta para o futuro

Cabe a todos que sufragaram seu nome garantir percurso na senda democrática

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Rachel Balsalobre

Jornalista e professora no curso de jornalismo da PUC-SP, é psicóloga e mestre em psicologia social (USP)

Mike Tyson, a grande lenda do boxe mundial, comentou certa vez que, ao ser apresentado a Pelé, sentiu uma coisa que ele traduziu como uma "pressão", algo de difícil definição, que lhe percorreu o corpo e os sentidos, e que ele traduziu, então, por "chill, pressure" —"calafrio", "pressão".

Existe alguma coisa indefinível naqueles homens e mulheres que, de alguma forma, marcam indelevelmente seu tempo, uma sociedade, um ciclo civilizatório, povos, acontecimentos históricos. Pessoas que fazem a história, não só por suas habilidades específicas, mas porque provocam comoção profunda e tocam coletividades inteiras ao emanarem este "não-sei-o-quê" —talvez inscrito naquela profundeza anímica da condição humana impossível de perscrutar, aquele ponto inacessível que nenhuma ciência ou cosmogonia é capaz de explicar.

Carisma é a definição paupérrima que se usa quando se quer tentar definir essa "coisa" incapturável. Ou magnetismo, ou vocábulos assemelhados, todos igualmente limitados. É como se a pessoa tivesse um "toque de Midas existencial", algo que se tem ou não se tem —e aqui não existe inflexão mística ou esotérica pressupondo "maktub", estava escrito, predestinação. No mundo da política stricto sensu, essas pessoas são muito mais raras do que no mundo das artes, das ciências, dos esportes e das demais atividades humanas em qualquer campo.

Luiz Inácio Lula da Silva é um desses homens raros, um Pelé, um personagem planetário, um autêntico, legítimo e inequívoco "espécime" desse subgrupo de homens universais —e aqui não há a menor pretensão de escrutínio de mérito ou análise sociológica, já que os inúmeros biógrafos e as toneladas de textos a seu respeito se ocupam disso.

Como Pelé, que acaba de nos deixar, Lula também é um "frissonner". Ele ouviu, de um religioso da importância de Dom Cláudio Hummes, falecido em junho de 2022, um "você me converteu". Em 1980, Dom Cláudio era bispo de Santo André (SP) e esteve ao lado dos operários nas greves de 1979 e 1980 do ABC paulista, assim como outros membros da Igreja Católica.

Embora a ditadura militar estivesse já agonizando, ainda agia com mão pesada sobre o movimento grevista, que desobedecia a lei que proibia greves, o que determinou a prisão de então metalúrgico Lula, o principal líder do movimento. Ao dizer a Lula "você me converteu", é lógico que Dom Cláudio não estava falando de conversão religiosa. Falava de uma conversão ao humano, ao grandioso destino humano universal e à febril convicção de uma verdade coletiva que enxergou naquele olhar que olhou fundo nos olhos dele. Ele não falou, como Tyson diante de Pelé, que sentiu um frisson; ele falou em conversão. São sentimentos da mesma natureza da epifania. Pelé, Lula, nomes que calam nas pessoas de um modo inexplicável.

E é este homem imenso que, pela terceira vez, assume o leme de um Brasil destroçado, traumatizado, transido, apavorado pela tragédia dos últimos quatro anos. É ele que vai curar esse trauma. É ele que encanta as serpentes, não no sentido depreciativo que o adversário pretendeu, mas no sentido de "converter" as serpentes que querem nos devorar. No espaço exato e vertiginoso de uma década, em que o Brasil olhou para todos os abismos e todos os abismos mais tenebrosos olharam o Brasil de volta, no último segundo do salto sem retorno, parado no ar, por um triz, ele enlaça de novo o Brasil para o reconverter ao seu destino mais bonito, retomando a caminhada civilizatória da justiça social e da dignidade humana.

Mas não nos iludamos: ele já está no "corredor polonês", e sabe disso. Cabe a todos que sufragaram seu nome, aos democratas, aos progressistas, aos iluministas, garantir que seu percurso —que o percurso do Brasil— seja na senda da democracia, não no suplício do obscurantismo, da tocaia e do golpe.

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