Descrição de chapéu
Ricardo Fabrino Mendonça e Renato Duarte Caetano

A paródia escatológica bolsonarista

O grotesco é a estética do neoautoritarismo, e força não deve ser desprezada

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Ricardo Fabrino Mendonça

Cientista político, é professor do Departamento de Ciência Política da UFMG

Renato Duarte Caetano

Cientista político e doutorando no Departamento de Ciência Política da UFMG

O bolsonarismo é uma grande paródia. Sem graça e mal-ajambrada, mas ainda assim uma paródia. Seus exageros, sua capacidade de esvaziar o que imita e sua habilidade em dotar de novos significados aquilo que esvazia tornam clara sua natureza.

A paródia esteve ao longo de todo mandato do ex-presidente: nas lives toscas, nas camisas de futebol e chinelos em fotos oficiais, nas bizarras cenas de cafés com autoridades, no desfile militar de tanques enfumaçados, nos comentários escatológicos e chistes pornográficos reiterados diante de um cercadinho de apoiadores. Tem coisa mais paródica que o cercadinho?

Tem, claro: a invasão de Brasília. Nossa versão verde-amarela do Capitólio e tudo que a antecedeu não pode ser entendida sem que reconheça sua natureza de paródia. As lágrimas, as fantasias, o sujeito que escorrega em frente à Mesa do Senado, outro que (finge?) defecar sobre a mesa, o roubo e a depredação de arte, a porta arrancada do ministro. A paródia bolsonarista se revela trágica, caricata e sem graça, não cansa de seguir firme seu roteiro pseudotrash que mistura John Waters com Mazzaropi.

A paródia engole e regurgita tudo aquilo que pode ser considerado como oficial e sério, ela se esbalda de mau gosto e irreverência. Não foi à toa que um urinol se tornou uma das obras artísticas mais famosas. Seu poder subversivo é o de zombar das instituições que definem o que pode ser considerado arte. A obra de Marcel Duchamp alude ao popular, eleva objetos cotidianos e banais ao estatuto de arte, subvertendo o poder elitista e hierárquico das galerias.

O problema emerge quando a estética subversiva da paródia é politicamente mobilizada para reafirmar hierarquias sociais. O que defendem os golpistas não é a ampliação da participação popular na democracia através da inclusão dos excluídos. As demandas são por intervenção e ditadura militar. E como se este não fosse em si um movimento desprezível, dobra-se a aposta emporcalhando a capital nacional.

A imagem que entrará para a história como memória da invasão de Brasília é o enxovalho das instituições democráticas. O grotesco é a estética oficial do neoautoritarismo, sua força não deve ser menosprezada pelo caráter aparentemente desinvestido de seriedade. A dança macabra do carnaval sombrio do fascismo que se desenrola não só no Brasil, mas em diversos países, ameaça diretamente os frágeis laços que tentam se construir na festa da democracia. A paródia se tornou uma das formas mais eficazes de projetar poder no contemporâneo, porque ela se apropria das próprias instituições que a compõem para avacalhá-las; seu poder depende da avacalhação.

O que os bolsonaristas desejam fazer com a democracia brasileira é zombar dela para colocar-se acima dela. Diferentemente das obras produzidas por dadaístas, porém, não há nada de subversivo, cômico ou democrático na paródia bolsonarista. Pelo contrário, o horizonte político desenhado por esses atores inverte a lógica do artista. O que querem é fazer da democracia um banheiro imundo, fétido e minúsculo onde os mais desprezíveis são autorizados a realizarem as piores das porcarias. Defecaram nos três Poderes e se regozijaram na pequenez de quem só sabe destruir.

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