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Lula subiu a rampa com o 'povo', agora precisa descer e lembrar

Urge uma política de memória como instrumento de proteção dos direitos

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Leandro Seawright

Doutor em história social (USP), é autor de “Vidas Machucadas: História Oral Aplicada” (ed. Contexto)

No século 19 havia a certeza de que, sem história, não seria possível construir uma nação. Aos poucos, porém, a história do século 20 —enfrentando problemas de guerras, ditaduras, revoluções ou abalos econômicos— desceu com elegância do pedestal e passou a se relacionar com a vida cotidiana, para usar uma expressão do historiador Michel de Certeau.

O encolhimento contemporâneo da ideia de nação não vem sem fortes reações, distopias e fantasmagorias. Existem aqueles que reagem simplesmente porque são reacionários —recriando inimigos e coisas paralelas que ocorrem num mundo inventado. A sociedade brasileira do presente assistiu atônita ao mais reacionário projeto da história da democracia brasileira, o levante em torno de Messias Bolsonaro.

Lula acena na rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, ao lado de representantes do povo brasileiro - Adriano Machado - 1º.jan.23/Folhapress

O que ocorre ao redor de pessoas radicalizadas não é mera doença ou só ignorância (evito a todo custo a patologização de movimentos radicais!), mas, usando expressão da história das religiões, certo transe coletivo induzido por mitos e reações ao mundo que se livrava tanto do racionalismo frio do século 19 quanto de parte do entulho ideológico do século 20.

Temos, agora, um contexto ainda mais conformado por memórias.

Pessoas estão interessadas em histórias de pessoas. Leem, por exemplo, livros de história oral num boom de memórias —com histórias insculpidas por autores como Svetlana Aleksiévitch e José Carlos Sebe Bom Meihy, entre outros. São histórias no plural, escritas com seu "h" minúsculo. Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, chegou à Presidência da República em cena sem precedentes: pessoas que subiram a rampa com o presidente representaram várias comunidades: indígenas, mulheres, negros, pessoas com deficiência, catadores, professores, entre outras.

Lula e seus ministros, como se sabe, já deram sinais positivos sobre a memória relacionada ao patrimônio histórico. Que bom. Mas, gostaria de considerar, ainda, outro aspecto.

Parcialmente superadas a ideias de que a nação está acima de todos e que o abstrato "pátria" é espécie de divindade a ser idolatrada, Lula pode demonstrar que a vida e as memórias das pessoas são patrimônios promissores em termos de proteção da dignidade da pessoa humana.

Proponho ao presidente e ao Ministério dos Direitos Humanos uma forte política pública de memória como instrumento de proteção dos direitos —no lugar de ruas ou rodovias com nomes de golpistas, estátuas de bandeirantes e homenagens a perpetradores, um projeto em torno de memórias comuns.

Pessoas contando histórias para a construção da dignidade humana e estímulos às políticas sociais programáticas (neste sentido, o que faremos ao lado dos yanomamis?). Afinal, "nunca antes na história deste país" precisamos tanto escutar pessoas e documentar a vida como dizem que ela é. Lula subiu a rampa com o "povo", agora é necessário descer e lembrar, escutar, fazer.

Porque as memórias de que falo não são palacianas.

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