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Lauro Gonzalez e Julio Leandro

Um problema muito além dos juros no crédito consignado

Aumento da margem consignável compromete ainda mais a renda dos pobres

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Lauro Gonzalez

Professor da FGV/Eaesp e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV

Julio Leandro

Professor do Mackenzie e pesquisador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV

A polêmica sobre o teto de juros do crédito consignado para aposentados e pensionistas parece ter virado uma daquelas séries exibidas nas plataformas de streaming. No último episódio, o ministro da Previdência Social revela ter comunicado a outros membros do governo, com antecedência, a decisão de reduzir o limite máximo de juros do consignado acima de 2,14% para 1,7% ao mês. Entre idas e vindas, o roteiro acabou tendo um final previsível, com a revisão para cima da taxa máxima cobrada por conta da pressão dos bancos, incluindo Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil, que haviam suspendido a modalidade.

A disputa envolvendo o consignado pode ser utilizada para pensar no que realmente interessa: uma agenda de médio e longo prazo para o crédito no Brasil, em particular aquele para pessoa física, cuja face mais notável são os 70 milhões de negativados. Antes disso, cabe aqui uma breve reflexão sobre como o episódio foi retratado pela mídia especializada. Alguns artigos, a partir de informações fornecidas pelos próprios bancos, fizeram uma decomposição dos custos a fim de encontrar uma taxa mínima ("break even") capaz de cobrir os custos.

Agência do INSS em Brasília - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Por diversas razões, essas análises não podem ser tomadas pelo valor de face. Primeiramente porque uma mesma estrutura de custos não se aplica ao mercado como um todo. Os grandes bancos não podem ser comparados, sem ajustes, a bancos médios e pequenos. Em segundo lugar, mesmo ajustando por porte, os especialistas sabem que a alocação de custos pode ser feita de diversas maneiras, o que implica fazer uma análise detalhada dessas alocações antes de conclusões aparentemente "técnicas".

Voltando à agenda de médio e longo prazo, o crédito consignado representou parte importante da expansão do crédito para pessoa física nas últimas décadas. Ao oferecer como forma de garantia o desconto direto em folha de pagamentos, o risco de inadimplência e a potencial perda efetiva são muito menores e, por isso, as taxas cobradas são relativamente mais baixas. Ocorre que, como quase tudo na vida, dose é fundamental. Gradativamente foram sendo aprovadas margens maiores de consignação, ou seja, o valor máximo da renda mensal que pode ser comprometida em um consignado, que hoje pode chegar a 45%.

A justificativa para aumentos de margem se baseia na visão de que os consumidores podem trocar dívidas mais caras por dívidas mais baratas. Por outro lado, como se trata de um crédito de prazo maior, o comprometimento de renda também é longo. A literatura acadêmica mostra que o tipo de crédito e a sua finalidade são fatores importantes para um endividamento ser ou não saudável. Há evidências de elevado uso de consignado como complemento de renda para arcar com gastos correntes. Nesse caso, com a atual dose permitida pelas margens de consignação, o crédito passa de remédio a veneno.

Além disso, o ciclo vicioso do endividamento é agravado por renegociações que postergam indefinidamente o consignado. O consumidor, incapaz de pagar a dívida e os juros, recorre a novos empréstimos com juros bem mais altos —e, muitas vezes, na mesma instituição que ofereceu o consignado inicial. Segundo o Banco Central, cerca de 73% dos beneficiários do INSS que recorrem ao consignado possuem renda de até dois salários mínimos. Com o aumento da margem consignável, o comprometimento de renda de quem já é pobre se eleva muito. Vale lembrar que esses níveis de comprometimento não levam em consideração o pagamento com dívidas não bancárias e serviços como água, luz etc.

Apesar de importante, não será a educação financeira o único fator capaz de resolver as mazelas dos trabalhadores superendividados. Fatores ligados à oferta predatória de crédito, o papel dos "pastinhas", dos bancos e, mais recentemente, de algumas fintechs precisa ser reavaliado. Renda estagnada, informalidade e precarização do trabalho são igualmente importantes.

Em suma, a tarefa é longa e vai muito além dos juros. Medidas cabíveis precisam entrar logo na agenda e, sobretudo, sair do papel.

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