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Juliana Souza

A última primeira: cabem quantas de nós na arena do protagonismo?

Cortam nossas asas na primeira indisposição com quem se atreve a incomodar

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Juliana Souza

Advogada e mestra em humanidades, direitos e outras legitimidades (USP), é presidente e fundadora do Instituto Desvelando Oris; palestrante e autora de “Torrente Ancestral, Vidas Negras Importam?” (ed. Matrioska)

De breu em breu, caminha nas redes o viral da dor que vende mais do que a conquista, o talento e a excelência. Passada a euforia, me pergunto o que vem após as telas pretas e as hashtags que bradam "vidasnegrasimportam", mas não transportam para a vida cotidiana a dita indignação. Uma equação familiar: inação, propositada alienação e irresponsabilidade. Insurgência tão fake como o filtro da rede social. Solidariedade líquida. Inglórias jornadas de letramento, que dariam uma maratona.

Fomos nos últimos anos incentivadas a inaugurar, romper, empreender, estrear, mas há uma realidade —já nossa velha conhecida— de ausência e solidão que se apresenta agora em um outro lugar, como quem diz "te avisei para não tentar, você já sabe qual é o seu lugar".

Juliana Souza (advogada e ativista antirracista)
A advogada e ativista Juliana Souza - Ariella Dashefsky/Divulgação

Afinal de contas, na arena da abundância, referência e visibilidade, cabem quantas de nós? Categorias fechadas, com um único exemplar que representa toda a "espécie". Já temos X, Y e Z —logo, não cabe você. É uma porta-voz da espécie, por categoria, lembra?!

Não, não estamos ancoradas na máxima de que o jardim do lado é mais verde. É que deste lado não pinga uma gota faz séculos. Somos extensos campos de terras férteis compelidas à improdutividade contra litros de adubo, pausa, tempo, experimentação, erro e acerto —acolhidos na mesma medida, onde não importa quando e se a colheita vem.

Filhas "ilegítimas" de uma pátria que tem medo do que a nossa liberdade e genialidade podem construir e mobilizar, que nos relega aos bastidores, à mercê da sorte, da memória ou do humor do "aliado ou liderança da vez" —a quem devemos ser extremamente e eternamente gratos. Ressalvadas raras exceções, o que vemos são alianças frágeis, paridas na contradição da culpa e da agência, encontrando o acorde entre caridade e responsabilidade, em que é complexo reconhecer o pleito de protagonismo para quem sempre foi objeto para afagar o ego.

É raro, mas vez ou outra acontece. A violência contra nós ou nossa partida comove, uma grande multidão compõe a mobilização do cortejo fúnebre —mas vazia é a plateia que celebra nossos feitos, apoia nossos sonhos, fomenta nossos voos mais altos, emergindo do subterrâneo da existência. Ao contrário: cortam nossas asas na primeira indisposição com quem se atreve a incomodar.

Mantida, portanto, a relação de eternas dependentes, cativas não emancipadas, herdeiras da tradição das mártires da compulsoriedade pós-cênica. E não entendem que poder escolher, desvinculada da necessidade de existir, faz toda a diferença. Liberdade com tutela ainda é dominação.

Nas preces e na pressa pela construção de um caminho que não leve ao mesmo lugar, seguimos Desvelando Oris, por corpos e vozes dissonantes em todos os espaços, tingidas por matizes múltiplas como a nossa existência, potência e agência, coordenadas na intencionalidade do bem viver que não vilanize o sucesso e a prosperidade em troca de narrativas de tortura e sacrifício forjadas de heroica superação.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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