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Renato Vieira

Levemos o juiz das garantias a sério

Modelo trará conforto cognitivo ao magistrado que assumir a causa após filtro do colega que o antecedeu

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Renato Vieira

Presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), é doutor em direito processual penal (USP) e sócio-fundador de Kehdi Vieira Advogados

Kazuo Ichiguro, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, proferiu emocionante discurso vertido em livro, no qual ressoam as lembranças de tempos passados e sementes para o futuro que ele viu com otimismo. O que isso tem a ver com a implementação do juiz das garantias no Brasil?

Tudo a ver, particularmente porque é chocante como o debate se coloca sem constrangimento, como se fosse para se levar a sério a argumentação sobre vícios formais e materiais da lei 13.964. Devemos nos envergonhar de ainda duvidar da necessidade da repartição de competência em razão de fases processuais. Países como Itália e Portugal, para citar dois nos quais nos espelhamos, e latino-americanos, como Uruguai, Chile, Colômbia e Paraguai, adotam a figura há décadas, alguns há quase meio século. Custa a crer na resistência da adesão a essa aquisição civilizatória.

Fachada do Supremo Tribunal Federal com a estátua da Justiça - Gervásio Baptista/STF

Argumenta-se que há inconstitucionalidade por inexistir prévia dotação orçamentária. Ora, e por acaso quando a mesma lei endureceu o regime de prisão e dificultou regras de sua progressão, ambos exemplos custosos ao sistema orçamentário nacional, não haveria inconstitucionalidade? Se para prender mais gente e por mais tempo não há inconstitucionalidade, por que haveria na alteração sobre repartição de atribuições a juízes, mesmo sem necessariamente criar cargo algum?

Mas há mais. Empobrece-se o debate a se ver na instituição da figura do juiz das garantias uma "desconfiança" no magistrado que preside a fase preliminar da causa. Mas será que alguém sinceramente crê que um juiz que decrete medida cautelar na investigação, atendendo-se ao rigor do "standard" de prova disponível, está na mesma condição de imparcialidade que outra autoridade que não tenha tido prévio contato com as mesmas provas para atuar no caso?

Defender a figura do juiz das garantias não significa desconfiar desse ou daquele magistrado, mas, sim, por demarcar o exercício de sua competência, auxiliar no seu trabalho. A vinculação a uma fase processual se dá para que nela se debruce com maior atenção, controlando o que deve ser controlado, em vez de carregar o ônus de se comprometer a, no futuro, reapreciar cenário que já conhecia. E mais: traz conforto cognitivo ao juiz que assumir a causa após o filtro do colega que o antecedeu. Há segurança, praticidade, e possibilidade de maior e melhor controle da regularidade do que ocorre na causa. Quem, seriamente, pode ser contra isso?

Por outro lado, diz-se que a matéria seria da chamada "organização judiciária" e por isso não poderia ser objeto de lei federal. É um engodo confundir ponto central ao processo penal como o da competência, com aspectos como horários de funcionamento de fóruns, número de serventuários, observância de feriados.

Em tempos em que pululam iniciativas de digitalização de autos no Brasil, é lamentável se questionar a implementação da figura ante o argumento de que haveria "impacto financeiro relevante no Poder Judiciário". Ora, além de possível rodízio de juízes entre comarcas contíguas e outras engenharias institucionais eficazes e conhecidas, é de se perguntar: de que "impacto financeiro" se está falando? Aqui deve-se lembrar que as ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) tramitam no Supremo Tribunal Federal há mais de três anos e, nesse tempo, não houve estudo sério a indicar os gargalos tão comprometedores. Pior ainda ao se lembrar que a ideia vem desde os debates sobre um novo Código de Processo Penal, em 2009.

Incomoda que entidades de classe tenham sido autoras dos questionamentos, tratando o tema como escaninho de corporação. Nas palavras de Geraldo Prado, parece existir uma disputa de espaço de poder, quando o assunto é salutar ao funcionamento da Justiça criminal como um todo.

O Brasil olha para os lados, vê a consagração do modelo e insiste em não enxergá-lo. O STF, ao julgar improcedentes as ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, não ganhará o Prêmio Nobel de Literatura, mas seus ministros e ministras, ao olharem para o presente e para o futuro em que a Justiça criminal brasileira funcione melhor, darão prova de obediência à Constituição. A memória não existe para nos perseguir, pois, caso contrário, deveríamos ter a mesma ousadia que se nota nas ações diretas e questionar a presunção de inocência, a proscrição da prova ilícita e outras conquistas.

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