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Lucas Pereira Rezende, Conrado Hübner Mendes e João Carlos Amoroso Botelho

Forças Armadas ainda são uma ameaça

Sem reformas na caserna, autoritarismo continuará à espreita

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Lucas Pereira Rezende

Professor de ciência política na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da USP e colunista da Folha

João Carlos Amoroso Botelho

Professor de ciência política na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

A reforma dos setores de defesa e segurança foi uma pauta central de democracias diversas no pós-Guerra Fria. Essa agenda mirava as relações civis-militares, base para a consolidação democrática. O período coincidiu com o ápice da terceira onda de democratização, que incluiu o fim das ditaduras militares na América do Sul. Apesar das pressões pró-reforma, o Brasil passou à margem. A Constituinte de 1988 não deu conta dessa tarefa indispensável. E as reformas econômicas dos anos 1990 não tocaram nos quartéis.

As razões têm berço na caserna e fora dela. A principal é a anistia, por meio da qual os militares se isentaram de punições por crimes contra os direitos humanos e a ordem democrática. Assim as Forças Armadas (FA) mantiveram autonomia e valores cultivados ainda na primeira metade do século 20, como o anticomunismo e o autoconcedido "poder moderador", que seguem vivos no seu mundo imaginário.

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Vândalos golpistas invadem a praça dos Três Poderes e depredam os prédios da República - Gabriela Biló/Folhapress - Folhapress

Mas civis têm sua responsabilidade. Agentes dos três Poderes da República e a sociedade se esquivaram do debate sobre o papel das FA e relegaram o tema quase exclusivamente aos fardados. Esse desinteresse permitiu que os militares se blindassem dos valores constitucionais e seguissem politicamente organizados para emparedar o controle civil. Ao não encontrar posições maduras da contraparte civil, o que inclui academia, imprensa, ONGs e associações diversas, além de parlamentares de fora da caserna, as FA puderam expandir sua atuação política na democracia.

Há receio generalizado de se fazer reformas urgentes nas corporações militares. Estabelecer controle civil efetivo sobre as FA não é demanda ideológica da esquerda ou da direita. É necessidade de um regime de proteção de direitos e liberdades.

Em texto recente nesta Folha, Joel Pinheiro da Fonseca afirmou que a democracia no Brasil foi preservada graças a Alexandre de Moraes e às Forças —e que, apesar do assédio, teriam resistido a embarcar na tentativa de golpe de Jair Bolsonaro. Afirmações como essa isentam os militares de responsabilidade pelos percalços passados e presentes da democracia no país. Invertendo a lógica do colunista, o regime não teria sido tão ameaçado ao longo do governo Bolsonaro e nas ações golpistas de 8 de janeiro se os militares não estivessem politizados em todos os níveis da sua hierarquia.

A candidatura do ex-presidente nasceu nos quartéis, aprovada por generais. O Alto Comando do Exército ameaçou publicamente o Supremo Tribunal Federal. Um general da ativa foi responsável pela caótica condução do Ministério da Saúde durante a pandemia de Covid-19, participou de ato político com Bolsonaro e não recebeu punição. O Ministério da Defesa e o Exército fizeram parte da campanha de descrédito do sistema eleitoral brasileiro. Um coronel da ativa, ajudante de ordens do ex-presidente, está preso por falsificar cartões de vacina, além dos indícios de conspiração golpista encontrados no celular.

Há denúncias de participação de integrantes das forças especiais do Exército, os chamados "kids pretos", nos eventos de 8 de janeiro. Insubordinações ao poder civil catapultaram candidaturas de militares. Em cada um desses exemplos, o crédito é das FA.

A atuação política de militares ameaçou democracias do mundo no passado e ameaça no presente. É preciso que a sociedade brasileira debata, de forma aberta e inclusiva, a cada vez mais inadiável reforma dos setores de defesa e segurança. Devemos perguntar para que servem as Forças Armadas e policiais, quais valores devem ser ministrados nas suas instituições de ensino e como deve se organizar a Justiça Militar, além de expandir carreiras civis nas áreas de defesa e segurança.

A proposta do governo Lula de mudança legal para limitar a atuação dos militares em crises domésticas é iniciativa importante. Criar outro dispositivo para substituir as GLOs, porém, não altera a lógica que permite a militares agir fora do escopo da defesa nacional e tendo cidadãos como oponentes. A herança da ditadura militar no artigo 142 da Constituição seguirá ativa.

Uma sociedade com um histórico de intervenção militar na vida política precisa, sim, tutelar o que aprendem, planejam e fazem seus soldados. É a sociedade que tem de definir o que os militares devem fazer, sempre com os propósitos de fortalecimento democrático e defesa dos princípios constitucionais.

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