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Leonardo Goldberg e Luciano Elia

Freud entre a polêmica, a leviandade epistemológica e a revolução

Tom panfletário das acusações à psicanálise nos deixa à espera de um debate à altura

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Leonardo Goldberg

Psicanalista, professor universitário e doutor em psicologia (USP), é autor de, entre outros, "O inconsciente e o Real na Clínica Lacaniana" (Almedina, 2023)

Luciano Elia

Psicanalista, é professor titular de psicanálise na Universidade do Estado do Rio de Janeiro; autor de, entre outros, "A Ciência da Psicanálise" (Almedina, 2023)

Acompanhamos a recente cruzada contra a psicanálise empreendida pela proeminente pesquisadora Natalia Pasternak, que exerceu papel fundamental na crise da Covid-19. Os argumentos charlatanice, crendice, pseudociência— tão inaugurais quanto a própria psicanálise, servem mais para alimentar a polêmica através do chamado marketing de guerrilha do que discutir eficácia, filosofia da ciência ou epistemologia.

Observe-se, a propósito, que o mundo "científico" atual carece da mais rudimentar crítica epistemológica. A chamada "ciência" atual faz o que quer, afirma o que bem entende, livre de toda crítica capaz de lhe exigir o mais minimalista rigor metodológico.

O pai da psicanálise, Sigmund Freud - AFP - AFP

Os grandes epistemólogos do século 20 morreram e não deixaram herdeiros nesta contemporaneidade órfã e deserdada. A ciência —particularmente seu flanco voltado para uma psicobiologia do comportamento— tornou-se refém do capital, dos grandes laboratórios multinacionais de fármacos (e psicofármacos), a mais rentável indústria do planeta: abre-se uma farmácia por minuto em cada quarteirão do mundo. Essa verificação importa quando, em nome da ciência (qual?), fazem-se acusações de "charlatanismo" sem que se saiba —porquanto não o há— de que lugar epistêmico procede a acusação.

É preciso lembrar que a epistemologia séria e rigorosa (que, sim, em tempos recentes existiu) jamais proferiu a sentença de "charlatanismo", epíteto que, por si só, já trai e revela a procedência ideológica, epistemologicamente acéfala e cientificamente leviana de sua emissão.

Assim como o século 20 e seus genocídios possibilitados por noções perigosas de ciência testemunharam, uma ciência que exclua a reflexão epistemológica de suas preocupações causa efeitos deletérios bem mais expressivos do que qualquer charlatanismo de feira.

Freud foi acusado de charlatão e imoral. Sua ciência reconsiderou o desejo e a sexualidade no centro da experiência humana e apontou a relação entre o conflito psíquico e manifestações sintomáticas em uma época em que a "ciência oficial" trancafiava dezenas de milhares de mulheres na Europa, vítimas de práticas terapêuticas que incluíam eletrochoques e lobotomia. Tamanha foi sua influência que ainda hoje Freud é o autor mais citado no mundo, de acordo com a plataforma "Google Scholar", que reúne artigos científicos e livros publicados em todos os países.

Ao propor que a ciência, em vez de excluir, reconsiderasse o sujeito, Freud causou uma revolução científica, quer dizer, tensionou ao máximo o paradigma de uma direção científica voltada para uma tecnologia apartada do ser que fala, deseja, sonha e sofre. Que uma parte da ciência tente manter o paradigma de uma ciência sem sujeito, sem "bobagem", é uma invariante bem retratada no conto "O Alienista", já clássico por caricaturizar o dogma positivista, que no Brasil ganhou até igreja.

O tom panfletário das acusações dirigidas à psicanálise, vazias de toda e qualquer possibilidade dialética, desabitadas de crítica e complexidade histórica, nos deixa à espera de um debate à altura que o tema merece.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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