Descrição de chapéu
Natalia Pasternak e Carlos Orsi

Não li e não gostei

Machismo e a misoginia nacionais produziram a paradoxal invisibilização de um homem para atacar a coautora mulher

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Natalia Pasternak

Doutora em microbiologia, professora na Universidade de Columbia (EUA) e Fundação Getúlio Vargas (SP) e presidente do Instituto Questão de Ciência.

Carlos Orsi

É jornalista e escritor, editor-chefe da Revista Questão de Ciência

Um dos objetivos da publicação de "Que Bobagem!" é motivar mudanças em certos hábitos culturais brasileiros. Vemos esse propósito cumprir-se de várias maneiras —uma delas, inesperada: a substituição da crítica ao texto do livro pela crítica ao índice do livro. Poucos são os comentários negativos que se engajam com os dados, fatos e argumentos apresentados em quase 400 páginas; inúmeros, os que reagem com indignação instantânea ao encontrar sua pseudociência de estimação em nosso índice de doze "bobagens".

Infelizmente, a essa curiosa inovação vem somar-se um velho hábito da baixa intelectualidade verde-amarela, a crítica que tenta atingir a obra mirando nos autores —ou, no caso, na autora, Natalia Pasternak. Pesquisadores do futuro hão de debruçar-se sobre o momento em que o machismo e a misoginia nacionais produziram a paradoxal "invisibilização" de um homem, o coautor Carlos Orsi, para mais facilmente atacar a coautora mulher.

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A microbiologista Natalia Pasternak durante a CPI da Covid, no Senado - Pedro Ladeira - 11.jun.21/Folhapress

Muitos dos ataques são ou deliberadamente mentirosos, ou revelam um grau constrangedor de ignorância por parte dos "críticos". Diz-se, sobre as credenciais de Pasternak, que abandonou a academia, quando está ativíssima, lecionando na Universidade de Columbia, em Nova York, e na Fundação Getúlio Vargas, orientando alunos, coordenando ou integrando grupos internacionais de pesquisa sobre hesitação vacinal, infodemia, ensino de ciências e do pensamento crítico e uso de evidências científicas na formulação de políticas públicas, com dez artigos com revisão pelos pares, nove capítulos de livros, um relatório da Organização Mundial de Saúde e três livros, tudo publicado só nos últimos dois anos, além de mais de 300 artigos de divulgação em jornais e revistas, sete prêmios nacionais e quatro internacionais.

Chama atenção também o uso de argumentos falaciosos, muito parecidos, aliás, com aqueles contra os quais prevenimos nossos alunos, para que saibam identificar e desmontar discursos negacionistas. É recorrente a alegação "nunca tratou um paciente", assimilada pelos críticos de índice diretamente do arsenal dos promotores da cloroquina e dos antivacinistas de estetoscópio. Parece-nos que o fato de uma bióloga e um jornalista nunca terem tratado um paciente deveria ser algo positivo. O inverso seria preocupante.

O crítico de índice também é fiscal da causa alheia: como os autores ousam lutar contra algo que, segundo as vozes na cabeça do crítico, é irrelevante? Isso se torna divertido quando o fiscal começa a listar o que "de fato importa", e aí vemos brigas que já compramos e assuntos que abordamos em nossos outros livros ou, com frequência, na Revista Questão de Ciência, da qual Pasternak é publisher e Orsi, editor-chefe. São centenas de páginas impressas e textos online denunciando e analisando a negação da mudança climática e das vacinas, o subfinanciamento da ciência e discutindo as ameaças à democracia —tema, aliás, tratado por Orsi em artigo publicado neste espaço, no início do ano.

Felizmente, o impacto cultural de "Que Bobagem!" vai além da produção de críticos de índice. Vemos a resposta nas reflexões dos leitores e, até, na mudança de postura de algumas autoridades. Este é o legado que fica, o resto é bobagem.

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