Descrição de chapéu
Lygia da Veiga Pereira

O admirável mundo novo dos modelos de embriões

Fica a pergunta: quais são as condições de darem origem a uma pessoa?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Lygia da Veiga Pereira

Professora titular de genética da USP e membro do Conselho Diretor da Sociedade Internacional de Pesquisas em Células-Tronco

Nunca esquecerei a emoção de ver pela primeira vez pelo microscópio um tapete de células do músculo cardíaco produzidas a partir de células-tronco (CTs) se contraindo de forma ritmada, como um coração.

Na mesma placa, identifiquei um aglomerado de neurônios conectados como em um cérebro. Essas são demonstrações pujantes da capacidade dessas células-coringa se transformarem em qualquer tecido do nosso corpo. Afinal de contas, é isso que elas fazem durante o desenvolvimento embrionário, processo que transforma a única célula que um dia fomos nos trilhões de células especializadas e organizadas que compõem cada um de nós.

0
A geneticista Lygia da Veiga Pereira, professora e pesquisadora da USP - Karime Xavier - 6.set.22/Folhapress - Folhapress

Um aluno brincou: "Cuidado, professora, um dia vai brotar um bebê dessas placas!". Demos risada, afinal um organismo é infinitamente mais complexo do que tapetes de células. Bem, 30 anos depois, isso pode ter deixado de ser piada...

Há décadas, cientistas utilizam CTs para entender como nossas células funcionam e por que deixam de funcionar. Esses conhecimentos básicos são, aos poucos, são traduzidos em aplicações para a melhora da saúde. A partir de 2013, conseguimos fazer com que as CTs formassem estruturas tridimensionais mais complexas, equivalentes a micro-órgãos, ou organoides, revelando mais uma capacidade formidável das nossas células: a de, no laboratório, se organizarem quase da mesma forma que fazem no nosso corpo. Hoje, organoides de cérebro, fígado, coração, rim e outros nos ajudam a entender ainda melhor o funcionamento do corpo humano.

Eis que em 2018 conseguimos que as CTs formassem não só um organoide, mas uma estrutura semelhante a um embrião —de camundongo, mas um embrião! Essas estruturas cresceram no laboratório por 8,5 dias como um embrião, iniciando a formação de órgãos, incluindo cérebro e um coração batendo.

Neste ano, a mesma coisa foi feita com CTs de macaco, e as estruturas semelhantes a embriões de símios transferidas para o útero se implantaram e induziram a produção de hormônios da gravidez nas macacas receptoras, mas desapareceram depois de dez dias.

Pois agora chegou a vez dos humanos. Recentemente, cientistas relataram a produção a partir de CTs de estruturas equivalentes a embriões humanos com 20 dias de desenvolvimento, quando eles têm entre 1 e 2 milímetros e os primórdios de uma coluna vertebral. Essas estruturas derivadas de CTs são um modelo poderoso para estudarmos as etapas iniciais do desenvolvimento humano sem precisar de embriões de verdade. Por isso, são cuidadosamente chamados de modelos de embriões —para fazer a importante distinção entre eles e embriões derivados de óvulos e espermatozoides.

Mesmo assim, fica a pergunta: o quão humanos são os modelos de embriões humanos? Qual é a sua capacidade de dar origem a uma pessoa? Se por um lado queremos que um modelo experimental seja o mais parecido possível ao organismo real, por outro, se os modelos de embriões humanos forem parecidos demais com embriões humanos, esbarraremos em sérias considerações éticas. Mas se simplesmente proibirmos essas pesquisas, perderemos uma grande oportunidade de desvendar os mistérios do desenvolvimento embrionário humano, conhecimentos que nos ajudarão a entender (e a prevenir) malformações congênitas, perdas gestacionais e infertilidade, e a produzir com mais eficiência células para terapia. Como seguir em frente?

Com a dose certa de ousadia e responsabilidade. Segundo a Sociedade Internacional de Pesquisas em Células-Tronco (ISSCR), a mais importante organização científica da área, "a pesquisa com modelos de embriões humanos só pode prosseguir com uma fundamentação científica convincente e após cuidadosa revisão e aprovação por um processo de supervisão científica e ética especializada. Modelos de embriões humanos também devem ser mantidos em cultura pelo tempo mínimo necessário para atingir o objetivo científico. E os pesquisadores também devem cumprir as leis e políticas locais". Oportunamente, em setembro deste ano, a ISSCR, com apoio da Fapesp, realizará o simpósio internacional "Dos conceitos à clínica: avanços nas pesquisas com células-tronco" em Ribeirão Preto (SP), reunindo lideranças nacionais e internacionais para falar de ciência, ética e de como realizar todo o potencial das pesquisas com células-tronco e modelos de embriões sem ferir a dignidade humana.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.