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Preto Zezé

Alguns gramas de reflexão: STF, maconha e oportunidades

É necessário assegurar proteção socioeconômica na transição do mercado ilegal para o legal

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Preto Zezé

Ativista e empresário, é conselheiro da Cufa (Central Única das Favelas) e membro da FNA (Frente Nacional Antirracista)

Estou acompanhando o julgamento e o debate no Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Quero compartilhar com vocês alguns gramas de reflexões e provocações e me coloco disposto e aberto a refletir e discutir sob pontos de vistas divergentes, qualificar as minhas posições e até mesmo mudar de ideia.

Alerto que a discussão sobre essa temática me deixa desconfiado quando se insere na lógica punitivista e jurídica, sem que se considere a realidade brasileira em sua complexidade, pois o histórico de intervenções nessa área, por mais nobre que fosse, resultou em piorar a situação que pretendiam resolver.

Refiro-me à lei 11.343/2006, que, ao mesmo tempo em que despenalizou o usuário, aumentou a pena para os classificados como traficantes. O problema reside exatamente aí, pois gerou um aprisionamento em massa discriminatório. Discriminatório porque das 832.295 pessoas presas no país, a maioria é negra (68,2%) e tem de 18 a 29 anos (43,1%). Assim, o louvável esforço para descriminalizar o porte de substâncias ilícitas para consumo próprio e a definição sobre as quantidades para se distinguir quem é consumidor ou traficante de maconha, na minha opinião, seguiram por uma rota minada e arriscada.

Quando entro no debate com especialistas sobre o efeito prático da descriminalização do porte de maconha, caso aprovada a nova regra, peço que me indiquem cinco pontos que garantam impacto efetivo na famigerada guerra às drogas, que combata o encarceramento e reduza a violência.

Ouço várias respostas, a maioria no campo subjetivo, de como essa alteração irá mudar a percepção da sociedade e, assim, possibilitar que a pauta avance para tenhamos mudanças mais efetivas. Contudo, considero que a nova possível regra não resolverá os graves problemas que hoje enfrentamos. As consequências da política de guerra às drogas, como o grande encarceramento e a violência, são questões complexas que exigem políticas públicas integradas e participação social. Não basta mudar uma definição jurídica sem alterar práticas e mentalidades.

Considero que o debate, como hoje colocado, vai gerar mais polêmica e divisão no país, sem trazer benefícios concretos para os mais pobres. Eu prefiro focar em ações que tenham impacto direto e imediato na vida das pessoas, como a prevenção, o tratamento, a redução de danos, a educação e, principalmente, a geração de emprego e renda —e oportunidade material e subjetiva de viver a juventude de forma digna, criativa e potencializadora nos seus territórios.

Voltemos nosso olhar para a favela, onde a economia informal domina em grande parte, inclusive, o varejo de drogas. Sim, na favela não há plantação, laboratório, banco ou fábrica de armas —o que há são "camelódromos" de psicoativos que operam de forma precária, mantendo uma economia bandida altamente lucrativa para muitos que não estão nas bocas. Diante da falta de proteção social e de trabalho com remuneração digna, esse mercado cria uma ambiência econômica que movimenta as trocas financeiras na favela —como, por exemplo, a lanchonete de uma tia evangélica que vende mais quando tem baile ou o mercado de beleza e moda que fica movimentado quando as atividades de entretenimento ligadas ao mercado de drogas acontecem nesses territórios.

A arrecadação aumenta a partir dessa economia criminosa que compõe um ecossistema caótico, regulado por lei e ordem à margem do mundo formal e do Estado democrático de Direito do asfalto. Na favela, o Estado democrático de não ter direitos é o que prevalece, e as pessoas têm que se virar como podem —não por escolha ou conveniência, pois a ausência do Estado obriga populações inteiras a conviverem e sobreviverem neste "Mad Max tropical".

Há uma questão que merece mais atenção no debate sobre a regulação das drogas e precede a definição das quantidades permitidas para o consumo. Sabemos que um mundo sem drogas é uma utopia, pois elas sempre fizeram parte da história da humanidade. Portanto, temos que pensar em como conviver com entorpecentes de forma mais racional e humana. Sou a favor da regulamentação da produção e do consumo das "drogas commodities", mas quero propor uma reflexão que antecede: as regras do mercado.

Quero questionar a distribuição da mais-valia da economia bandida frente ao que sofremos no cotidiano. É preciso que os territórios e as populações que hoje são vítimas da guerra tenham direito a reparações e participações num possível mercado legal. Os atores dessa guerra sem vencedores, aqui me refiro aos trabalhadores atuais do mercado de drogas, precisam ter o que as empresas chamam de segurança jurídica dos benefícios e dos lucros.

É necessário assegurar proteção socioeconômica na transição do mercado ilegal para o legal —e sem essa discussão nada pode ser decidido. O modelo de regulamentação será o mesmo de outras substâncias que já circulam no mercado legal, como as bebidas alcoólicas, onde o Estado arrecada seus impostos, as empresas faturam alto e as agências lucram com publicidade e propaganda? Neste caso, para os territórios e seus personagens da vida ordinária, só sobrou o caos agravado como os altos índices de violência doméstica ou acidentes de trânsito como saldo no domingo.

Sem contar que nada garante que numa possível regulamentação os atuais trabalhadores ilegais serão incorporados como trabalhadores formais com direitos num eventual mercado legal. Lembro do que me disse um jovem vendedor ambulante de entorpecentes: "Preto, se legalizar a maconha, eu vou vender outra coisa, preciso de dinheiro para viver". Ou seja, o debate é antes de tudo sobre economia, o dinheiro, a grana, o capital, com quem ficará as notas de cem.

Outro ponto importante é sobre a autonomia e harmonia entre os Poderes da República. Tenho receio de um ativismo jurídico, mas, nesse caso, considerando o país que vivemos e o fato de que as matérias relativas à constitucionalidade das leis são de responsabilidade da Suprema Corte, o Judiciário, ao realizar esse debate, precisa cortar na própria carne —ou seja, fazer sua mea-culpa diante da barbárie produzida pela política criminal de drogas que colocou o Brasil no terceiro lugar de maior população carcerária no mundo. Como garantir a aplicação da lei diante de um sistema de Justiça criminal que prende, acusa e julga por cor, classe e CEP? Como ficará o acesso à Justiça para quem não pode pagar? Como garantir presunção de inocência nas audiências de custódia considerando a seletividade penal e racial nas versões apresentadas pelos operadores da segurança pública?

O debate aqui não é sobre posição progressista ou conservadora, mas sobre receita e despesa do Estado, já que somos nós, os contribuintes, que pagamos essa conta. Ao contrário do que dizem, não é fato que "a polícia prende e a Justiça solta". A Justiça brasileira prende muito e prende mal, e só não prende mais porque não tem onde colocar. Mas, quem tem acesso à Justiça e advogado renomado, não fica preso. É fato triste e lamentável, reconhecido e constatado pelos próprios ministros do Supremo. Então caberia ao STF, como guardião da Constituição, ampliar essa conversa para os outros Poderes e, principalmente, para a sociedade, pois somos nós que financiamos um custo em torno de R$ 4.000 por cada pessoa presa, que não é ressocializada e sai pior do que entrou diante de um sistema desumanizador. Ao passo que não refletimos como investir a metade do valor para evitar essa tragédia anunciada.

Considero que os estudiosos têm um papel importante na discussão sobre o tema, mas os exemplos que geralmente são referência no debate são de países muito diferentes do nosso, onde a segurança pública faz parte de um sistema organizado e integrado e, mesmo assim, enfrentam problemas. Agora, pense em um país onde, depois da redemocratização, a segurança pública foi o único setor que não se adaptou às mudanças e compromissos da Constituição de 1988, mantendo o modelo arcaico e autoritário para a sociedade e para os próprios trabalhadores. A segurança pública precisa ter sua estrutura, seu sistema único, como o SUS ou o Suas, mas, infelizmente, estamos ainda longe de criar o nosso SUSP. Então, ou reconhecemos que não adianta ficar "enxugando gelo", como diz na gíria policial, ou aproveitamos essa oportunidade para arrumar a casa e convidar mais gente para participar.

A situação atual do país exige uma reflexão profunda sobre os rumos da democracia, dos direitos humanos e da justiça social. Não podemos esperar que o Judiciário resolva os grandes conflitos que afligem a nação. É preciso que haja um diálogo amplo e construtivo entre os diferentes setores que constroem a sociedade brasileira, buscando consensos em torno de um pacto civilizatório e uma agenda pública que garantam união, reconstrução e desenvolvimento. A nossa ideia deve ultrapassar a tríade efetivo, munição e prisão. Do contrário, continuaremos a ver o aumento da criminalidade, do encarceramento e da violência. É urgente que repensemos o modelo de segurança pública no Brasil, levando em conta as causas e as soluções dos problemas que enfrentamos.

Voltemos à questão das drogas. Temas como esse exigem uma abordagem sensível, pois envolvem vidas humanas. Sei que muitos amigos se preocupam com a questão da criminalização da maconha, mas ela não é a causa nem a justificativa para as ações violentas nos territórios das favelas. Também não é por causa dela que acontecem as chacinas e os massacres nesses lugares. Basta olhar para a história brasileira de violências contra os pobres e os negros e ver que as drogas são apenas um pretexto usado por quem quer manter a estrutura sociorracial e o status quo. O sistema de Justiça reproduz essa lógica perversa, e os agentes do Estado, legitimados por esse caos, agem de forma ineficaz, matando e morrendo.

Na minha opinião, a discussão sobre os gramas da maconha é feita de forma descontextualizada, merecendo quilos de lucidez. Deve-se levar em conta os aspectos sociais, políticos e econômicos que envolvem o tema. Acho que é preciso ter mais clareza e profundidade para que a sociedade e o poder público possam construir uma nova política sobre drogas, eficaz e humanitária, que não se baseie apenas na repressão e na criminalização. Repito, a base na qual se produz a questão das drogas é bem mais material, econômica e ética do que subjetiva, criminal e moral.

Acredito que seja possível lidarmos com a questão das drogas de forma mais racional, compromissada e baseada em evidências. Dizer que não vai funcionar é uma forma de se omitir e se conformar com a situação atual. Eu não me conformo com a ideia de que descriminalizar o porte de maconha e definir a quantidade para o consumo pessoal é o máximo que podemos fazer, pois isso é muito doloroso e custoso para a sociedade, especialmente para quem perdeu alguém nessa guerra.

Se não mudarmos o rumo dessa tragédia, veremos se repetir as chacinas, como a do Guarujá, onde os mortos não têm nada a ver com essa conversa sobre quantos gramas fazem um traficante. Mas são vítimas de um abandono de uma agenda pública civilizatória. São apenas números, estatísticas, votos a menos, corpos. E eu não relativizo tragédias nem aceito sequestro da agenda pública. Para mim, a tragédia é grande no Rio de Janeiro, na Bahia, no Ceará ou em São Paulo, independentemente do gestor de plantão. E, infelizmente esse modelo fracassou, perdeu a sua efetividade; insistir nele é marchar para o abismo.

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