Suponha que caiba a você definir o funcionamento de um órgão coletivo, cuja tarefa seja tomar decisões com base em regras e produzir um documento claro e coerente, que justifique a decisão tomada.
Há duas opções: 1 - os membros desse órgão se reúnem, sem a presença de outras pessoas, deliberam, decidem e escrevem um texto que expresse a opinião de todos ou da maioria; ou 2 - em uma sala com plateia e câmeras de TV, os integrantes, um após o outro e sempre na mesma ordem, dão suas opiniões, que depois são coladas em um documento, não importa o quão contraditórias elas sejam.
Se você preferiu a primeira alternativa, você não está sozinho. É assim que funcionam tribunais de cúpula na maioria das democracias (como na Alemanha e na Itália, para mencionar apenas dois exemplos). Portanto, quem diz que deliberação reservada é antidemocrática está mal informado. A segunda alternativa descreve como funciona o Supremo Tribunal Federal.
Quando o presidente Lula sugere votos sigilosos no STF, seus motivos são equivocados (proteger um indicado seu) e a proposta não é precisa (trata-se de deliberação reservada, não de voto sigiloso). Mas o debate é pertinente e faz parte de uma reflexão mais ampla, de fortalecimento do STF como instituição colegiada.
Tenho defendido deliberações reservadas na corte há vários anos. Acompanhadas de outras medidas importantes, como a redução dos poderes individuais dos ministros (pedidos de vista e decisões monocráticas), elas restringiriam o espaço para espetáculos e para ministros que queiram ser mais importantes do que seus pares ou do que o próprio tribunal.
O debate, portanto, diz respeito a como aperfeiçoar o processo decisório e fortalecer o tribunal como um órgão colegiado. O grau de publicidade do voto é apenas uma das engrenagens desse processo. Nos países cujos tribunais de cúpula adotam deliberação fechada, alguns vedam a identificação dos votos de seus integrantes; outros informam se a decisão foi unânime ou não, mas sem identificar nomes; em outros, por fim, a decisão é assinada pelos que com ela concordam, e votos divergentes (em geral, também coletivos) podem ser publicados.
Esses arranjos procuram ampliar a voz da instituição e, para isso, diminuem a exposição pública de seus membros. Quem se opõe a esse tipo de proposta tem que justificar por que a superexposição dos ministros do Supremo —única no mundo— é benéfica. Dizer que a sociedade tem o direito de saber o que cada ministro afirma em cada decisão, para poder fazer cobranças, é transportar indevidamente a lógica da representação política para uma instituição judiciária.
Mas e a transparência e a publicidade [art. 93, IX, da Constituição: "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)"]? É ingenuidade acreditar que câmeras no plenário mitigam pressões de bastidores. E publicidade não exige que juízes debatam (ou monologuem) na frente das câmeras.
De qualquer forma, a discussão sobre o art. 93, IX não diz respeito ao mérito do modelo de deliberações reservadas, mas ao caminho legislativo para adotá-lo. Quem menciona o art. 93, IX, não argumenta contra as deliberações reservadas, apenas alerta que seria necessário emendar a Constituição. Esse é um debate relevante, mas posterior.
Transparência e publicidade não demandam plateia, torcida, câmeras ou votos individuais, mas argumentos jurídicos transparentes, expressos de forma clara e compreensível pela sociedade, em um documento público (o acórdão) que transmita de forma inequívoca a opinião do tribunal, seja ela unânime ou majoritária. Nada no atual processo decisório do STF fomenta esse objetivo.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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