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Fabio Lampert

Crimes sem castigo

Guerra é apropriação massiva de território a fim de enriquecer elites russas

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Fabio Lampert

Doutor em filosofia (Universidade da Califórnia - Irvine), ensina e pesquisa filosofia na Universidade de Greifswald, na Alemanha

No início de março, Dmitri Ivanov estava sendo julgado em Moscou, acusado de divulgar notícias falsas online sobre a "operação militar especial" russa na Ucrânia, incluindo reportagens sobre os crimes cometidos pelo Kremlin em Butcha e conteúdo onde a "operação militar especial" é chamada de "guerra".

A promotora, perplexa com sua atitude, perguntou a Dmitri como ele poderia saber que o Exército russo estaria de fato cometendo tais atos na Ucrânia. "Você estava lá?", questionou-lhe. "Li relatos de agências de notícias independentes e organizações internacionais... E usei bom senso". Ela deixou claro para Dmitri que suas ações eram ofensas criminais e não entendia por que ele se arriscaria a ir preso. "Porque a liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro", respondeu Dmitri. Ele tem 23 anos de idade e foi sentenciado a mais de 8 anos de prisão.

O ativista da oposição russa Dmitry Ivanov, acusado de espalhar informações falsas sobre o Exército russo durante o conflito militar Rússia-Ucrânia, dentro de um recinto para réus enquanto participa de audiência em Moscou; ele foi condenado a oito anos de prisão - Stringer/Reuters

Não há comparação entre ativistas como Dmitri e criminosos grotescos como Ievguêni Prigojin, líder do grupo Wagner, responsável por crimes de toda sorte na Ucrânia, Síria, Líbia e em diversos outros países, e morto no dia 23 de agosto. Mas há pontos de conexão entre eles.

Até pouco tempo, a reputação de Prigojin era legalmente protegida. A lei usada para condenar Dmitri, tornando o "déscredito" das Forças Armadas russas ilegal, foi ampliada por Vladimir Putin no final do mês de março para proteger grupos "voluntários", incluindo o grupo Wagner.

A prisão de Dmitri também revela o custo de falar a verdade na Rússia, e esse foi um dos principais crimes cometidos por Prigojin; embora mentiroso, ele disse (em um lapso de honestidade) a verdade sobre a invasão da Ucrânia, em um vídeo divulgado em junho: a invasão é uma tentativa de apropriação massiva de território alheio, usando pessoas pobres como bucha de canhão, a fim de enriquecer as elites do país. A prisão de Dmitri e o assassinato de Prigojin revelam a intensidade da violência e repressão na Rússia. Justo ou injusto, ativista ou terrorista, você será preso, envenenado ou morto caso seja percebido como desleal ao regime, restando-lhe o putinismo ou a indiferença.

Os crimes de Putin na ultima década, incluindo o crime internacional de agressão à Ucrânia, e o massacre ininterrupto de ucranianos desde 2014, intensificado desde o ano passado, mostram que ele tem se tornado cada vez mais violento e errático. As guerras, constantes não somente no seu governo, mas em séculos de regimes russos imperiais com diferentes roupagens que colonizaram, escravizaram e mataram milhões, são a manifestação exterior de um vórtex de violência tentando engolir todos ao seu redor.

A violência e o gangsterismo da Rússia de Putin estão não somente atrelados a uma herança imperial brutal maquiada como "gloriosa", mas tentam efetivamente levar-nos de volta ao passado. Monumentos a Stálin são erguidos enquanto nós discutimos os problemas morais envolvendo estátuas de antigos colonizadores e escravistas; campos de concentração para ucranianos são construídos enquanto assistimos confortavelmente a documentários sobre os Gulags; civis desarmados são assassinados em Butcha e Izium enquanto lemos sobre tiros na nuca e valas comuns em livros sobre a Segunda Guerra Mundial. Alguns sugerem a leitura de Mario Puzo para entender a Rússia, mas Dmitri cita "1984", de George Orwell, inspirado na ditadura totalitária de Stálin.

Alguns sugerem que a Ucrânia, em prol da paz, negocie territórios com Putin. Isso ignora a violência trazida pela Rússia aos próprios territórios por ela invadidos e ocupados, gerando um ciclo maligno de sofrimento e traumas, premiando uma ditadura onde governam a impunidade e a injustiça. "Não existe paz sem justiça", disse o poeta ucraniano Serhii Jadan, em discurso recente. Se o governo brasileiro é sério quando fala de paz na Ucrânia, que comece a falar sobre justiça. Justiça para os ucranianos. Justiça para Dmitri. Putin não deve ficar impune.

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