Legitimidade democrática em jogo

É temeridade política apostar apenas em eleições para barrar autocratas

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Marina Slhessarenko Barreto

Pesquisadora do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo) e do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), é autora de “O Caminho da Autocracia” (ed. Tinta-da-China, 2023)

Em entrevista à Folha ("Banir populistas como Trump é mais perigoso do que deixá-los disputar eleições, diz filósofo", 27/8), o cientista político britânico David Runciman descarta a responsabilização jurídica de políticos abertamente antidemocráticos. Segundo ele, é mais perigoso barrar Donald Trump com a prisão do que arriscar sua disputa nas eleições. Não deveríamos continuar cacifando nossas instituições, já capengas, com o métier de controlar esses alpinistas da autocracia. Antes, é preciso implantar formas de democracia radicalmente diferentes (por exemplo, sorteios e votos para crianças) para esses figurões perderem espaço. As eleições não passam de um momento pequeno da vida democrática e não devem ganhar nossa total atenção.

Há, ao menos, dois problemas no argumento. Em primeiro lugar, ele confunde duas dimensões complementares de atuação política. Por um lado, temos que afirmar nosso sistema político democrático e suas ferramentas de controle; afinal, isso é a base de sua legitimidade. Ao mesmo tempo, precisamos pensar em outras formas de aprofundamento da democracia. É como trocar as rodas de um carro em movimento —para isso, a premissa é o carro estar funcionando.

O ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL), que está inelegível, e o ex--presidente americano Donald Trump, que busca viabilizar nova candidatura, mas está envolvido em uma série de ações judiciais, durante jantar na Flórida (EUA), em 2020 - Jim Watson - 7.mar.20/AFP - AFP

Virar as costas para tentativas de insurreição e rebelião, abuso de poder político e tantos ataques à democracia tem custos altíssimos. Eles envolvem, de um lado, a sinalização aos cidadãos de que o sistema político segue bem, obrigada. Como se o que os detratores da democracia fizeram fosse aceitável. Além disso, encorajam desventuras em série por outros políticos autoritários, já que há garantia de impunidade.

Normalizamos até aqui o discurso extremista e nos acostumamos a riscos institucionais agudos, até eles se tornarem crônicos. Como consequência, presenciamos a queda brusca de confiança nas instituições, a falência múltipla de capacidades institucionais e a atuação em modo de autodefesa das agências de controle. Agora, porém, estamos tendo a chance de reverter isso.

Em segundo lugar, o argumento de Runciman incorre em uma contradição evidente. Se as eleições nem são tão importantes assim, por que colocar só em seu colo a recompensa negativa aos autocratas? O autor certamente não discordaria do efeito corrosivo deles em cargos de poder. Se isso importa —e é um dos maiores desafios democráticos que enfrentamos—, como deixar o destino político dessas figuras apenas a cargo de disputas eleitorais? Não custa lembrar da captura institucional criminosa que Jair Bolsonaro fez da Polícia Rodoviária Federal no segundo turno das eleições de 2022, por exemplo.

Retrato do professor David Runciman
O professor David Runciman - Mark Turner - Mark Turner

A política não opera em polos, mas em círculos. Tanto é assim que a posição que Runciman diz rejeitar, de quem reduz democracia às eleições, aproxima-se muito de sua própria. Também para eles, as eleições devem selar o destino político de Trumps e Bolsonaros, sem que outras instituições se metam. No máximo, sua condenação poderia se dar por casos "não políticos". Como se a própria escolha de quais casos usar para condenar não fosse, ela mesma, política.

Mais: como se o sistema de justiça pudesse dispor da jurisdição e escolher a dedo a atuação em casos que não envolvem as questões mais urgentes que vivemos hoje. Se o bom senso previne a escalada dos togados ao front normal da democracia, não deve proibir sua atuação em casos que dizem respeito a sua própria sobrevivência.

Eleições acontecem em poucos dias; a democracia se dá principalmente em todos os outros —com isso estamos de acordo. Mas apenas apostar em eleições para barrar autocratas é irresponsabilidade política, cega ao funcionamento próprio da democracia. Ignora que tribunais e outras agências de controle têm competências estabelecidas de zelar pelo bom funcionamento democrático.

Justificar a aposta nelas para a derrota do autocrata com a aprovação de novo cardápio de inovações democráticas é assepsiar duas dimensões complementares de atuação política: a de sua afirmação e sua reforma. É trocar rodas de um carro em movimento quando ele está prestes a sofrer perda total. Ataques veementes à democracia só podem ser corretamente combatidos com uma ecologia de respostas à altura: dos tribunais, do sistema político e da sociedade civil.

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