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José Vicente

O Banco do Brasil e a escravidão

Por ele fluiu o dinheiro para financiamento da compra e venda de escravos

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José Vicente

Advogado, sociólogo e doutor em educação, é fundador e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares e membro do Conselho Editorial da Folha

A ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) contra o Banco do Brasil para conhecer e delimitar sua ação, participação, responsabilidade e mesmo a lucratividade auferida com operação econômica e financeira da indústria da escravização dos negros, apesar de tardia, configura uma necessária, oportuna e indispensável medida para devolver ao país parte de sua história intencionalmente apagada, desconstruída e injustificadamente desconhecida e ignorada pela sociedade e seus cidadãos.

Constitui, da mesma forma, uma oportunidade extraordinária para identificar papéis e responsabilidades de agentes públicos e privados, por ação ou omissão, num crime de lesa-humanidade, movido pelo racismo e, portanto, imprescritível, e também o grau de responsabilidade para firmação do valor da indenização e reparação dos danos a serem devidamente arbitrados, como tem sido feito em várias partes do mundo envolvendo instituições com passado de culpa e responsabilidade nessa infame orquestração.

A escravização dos negros por mais de 350 anos no Brasil somente foi possível porque antes de tudo foi construído um sistema de persuasão e convencimento tão mesquinho e cruel que, além de confrontar as virtudes dos valores civilizatórios do seu tempo, operou de maneira desonesta e indecente, a ponto de subverter verdades e dogmas inconcessíveis do caráter e do sentimento humano para garantir a satisfação da ganância e cupidez por riqueza e poder de um conjunto limitadíssimo de pessoas, instituições e elites dirigentes do Estado.

Fachada do Centro Cultural Banco do Brasil em Brasília, onde funcionou a sede de transição do presidente eleito Lula - Pedro Ladeira/Folhapress

Insatisfeitos com o grau de degradação humana e estimulados e encorajados pela naturalização da inominável barbárie humana, indivíduos, instituições e Estados fizeram mais: violentaram e seviciaram mulheres e crianças negras no território sagrado do altar e do lar. Humilharam, chicotearam, assassinaram e esquartejaram homens negros nos espaços público e privado e locupletaram-se de maneira ilícita e injusta com a riqueza gerada por sua força de trabalho, com aquiescência e indiferença do Estado e sem qualquer objeção ou contestação das forças sociais relevantes da época.

Nem o pensamento filosófico, nem o pensamento religioso, nem o pensamento político, econômico e mesmo científico levantaram uma palha para denunciar e exigir a cessação daquele estado cruel de selvageria e desumanidade. Quando o planeta foi varrido pelas ideias e valores revolucionários iluministas e sobre elas iniciou-se a construção da uma nova visão e formulação de mundo, com elas o Brasil ambiguamente conciliou a desigualdade, não a liberdade, em relação aos negros. E, quando a vontade do povo precisou ser erigida sob os cânones de uma Constituição, foi possível subverter o senso e a norma para exaltar e garantir a liberdade para alguns e manter intocada a escravidão para os negros, a maioria dos brasileiros daquela época.

A riqueza produzida pela escravidão e o processo econômico que a instituía foram lastreados, financiados e garantidos com dinheiro público e privado, ambos geridos, administrados e negociados por agentes públicos. E os lucros daí advindos originaram e constituíram as grandes ou pequenas fortunas e promoveram o enriquecimento das pessoas, instituições e do próprio país. Tudo devidamente estruturado, organizado, gerido, administrado, escriturado pelo Banco do Brasil e seus congêneres, devidamente remunerados pelos eficientes, qualificados e lucrativos serviços prestados.

Todos ganharam —muito— com a escravidão, menos os negros, que tiveram que pagar caríssimo e dilapidar seu parco patrimônio, quando havia, para comprar a peso de outro sua alforria e escapar da escravidão.

Se todos se locupletaram econômica e financeiramente com o sistema da escravidão, o Banco do Brasil, duto por onde fluiu todo o dinheiro para financiamento da compra e venda de escravos e para o tráfico negreiro, deve, além de desculpas aos negros e à nação, reconhecer com honestidade o tamanho de sua responsabilidade para que seja promovida a devida reparação.

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