Descrição de chapéu The New York Times

Guardian investiga seus vínculos, e os do Reino Unido, com a escravidão

Jornal se torna instituição britânica mais recente a reconhecer seu papel no tráfico escravista e desculpar-se por isso

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David Segal
Manchester | The New York Times

É o tipo de artefato histórico que poderia facilmente passar despercebido: um livrinho antigo e frágil descoberto nos arquivos do Escritório de Registros de Derbyshire, na região de East Midlands, Inglaterra. O volume, um caderno de contabilidade comercial de 1822, contém os nomes de escravizadores que operavam fazendas de algodão na costa da Flórida, Geórgia e Carolina do Sul.

E em uma das páginas amareladas, alguém escreveu à mão em letra elegante o nome da companhia que estava comprando o algodão dessas fazendas: Shuttleworth, Taylor & Co.

Cassandra Gooptar, pesquisadora pós-doutoranda na Universidade de Hull, conhecia a firma e havia cinco meses estava procurando qualquer rastro dela. O Taylor em questão era ninguém menos que John Edward Taylor, fundador do Manchester Guardian, hoje conhecido simplesmente como The Guardian, há dois séculos o mais destacado jornal progressista do Reino Unido.

Série do Guardian foi publicada com o título "Capital do algodão: como a escravidão transformou o Guardian, a Inglaterra e o Mundo". No topo, há a explicação: "como nós revelamos os elos entre os fundadores do Guardian e a escravidão." O título fica no terço inferior. Ao fundo, estão desenhos estilizados de pessoas negras trabalhando em lavouras. Documentos e desenhos aparecem por cima da ilustração, como se estivessem colados.
Série do Guardian foi publicada com o título "Capital do algodão: como a escravidão transformou o Guardian, a Inglaterra e o Mundo" - Reprodução

"Percebi naquele instante que agora podemos vincular o fundador do Guardian a pessoas escravizadas nas Sea Islands (uma cadeia de ilhas ao longo da costa sudeste dos EUA)", disse Gooptar em chamado recente de Trindade, onde ela cresceu. "Isso comprovava que Taylor lucrou com a importação de algodão colhido por escravos."

Os esforços de Gooptar foram encomendados pelo próprio Guardian, e os fatos que ela trouxe à tona serviram de base para a série "Cotton Capital: How Slavery Changed the Guardian, Britain and the World" (Capital do algodão: como a escravidão transformou o Guardian, a Grã-Bretanha e o mundo). O projeto incluiu video-ensaios de historiadores, retratos criados por artistas negros de renome, um podcast e uma newsletter.

O projeto não se limitou a pesquisar John Edward Taylor, mas debruçou-se também sobre os investidores originais no jornal, nove dos quais lucraram com a economia escravista, como a pesquisa revelou. Incluiu também alguns mergulhos na história das pessoas escravizadas.

"Historiadores nos disseram originalmente que seria pouco provável que descobriríamos muita informação sobre as próprias fazendas, exceto por uma ideia geral da área geográfica envolvida", disse Maya Wolfe-Robinson, editora de "Cotton Capital". "Então foram descobertas essas ligações com as Sea Islands e uma fazenda na Jamaica, e nesse ponto percebemos que havia uma oportunidade de fazer uso de todas nossas ferramentas jornalísticas."

O Guardian pesquisou em seus arquivos e descobriu que o jornal, apesar de ter tido postura fortemente abolicionista, publicara editoriais favoráveis aos escravistas. Ele apoiou, por exemplo, pagamentos feitos pelo governo a proprietários de escravos a título de indenização por "bens" perdidos.

O projeto é um dos mais completos e públicos dos acertos de conta em curso, no momento em que o Reino Unido inicia um processo hesitante e ocasionalmente criticado de encarar a história tenebrosa de escravidão que faz parte de seu passado –algo que, para muitos, já deveria ter sido feito há muito tempo.

Há décadas os britânicos enfocam, com orgulho compreensível, o papel pioneiro exercido por seu país na abolição da escravidão, mais notadamente quanto o Parlamento britânico aprovou a Lei de Abolição da Escravidão, em 1833. Mas algo que está quase totalmente ausento dos currículos e discussões são os valores espetaculares vertidos na Grã-Bretanha por cerca de 200 anos graças à escravidão.

"A Grã-Bretanha construiu uma narrativa no século 19, com muito êxito, que se tornou dominante por 150 anos", comentou o historiador Nicholas Draper, co-autor de "Legacies of British Slave-Ownership". "Dizemos que a escravidão foi uma coisa terrível, mas que reagimos contra ela, acabamos com ela e eliminamos essa mancha da nação britânica."

A ficha demorou a cair porque Manchester tem fama de ser uma cidade que lutou pela abolição. Podíamos dizer ‘sim, fazíamos parte da indústria do algodão, mas combatemos a escravidão.'

Keisha Thompson

Poeta residente em Manchester

Os Estados Unidos ainda está tentando determinar qual é seu próprio relato da escravidão, uma história que se oculta atrás de debates acirrados e altamente polarizados em torno da ação afirmativa, brutalidade policial, disparidade de renda e até de quais livros devem fazer parte de bibliotecas de escolas do ensino médio. O que é indiscutível é que um número enorme de americanos se beneficiou por ter escravizado outros americanos.

Em contraste com isso, dizem acadêmicos, muitos britânicos apenas recentemente começaram a tomar conhecimento de quantos aristocratas e figuras notáveis de suas cidades enriqueceram graças à escravidão. Embora a Grã-Bretanha tenha começado a participar do comércio escravista mais tarde e tenha inicialmente ficado atrás de suas rivais Espanha e Portugal, no século 18 o país já era o maior transportador mundial de africanos capturados.

Esses fatos não eram muito discutidos até o assassinato de George Floyd, em maio de 2020, e a disseminação mundial do movimento Black Lives Matter. Em pouco tempo, várias corporações britânicas divulgaram pedidos públicos de desculpas por seus vínculos com o comércio de escravos. Uma rede de pubs, Greene King, revelou que seu fundador, Benjamin Greene, recebeu do governo britânico o equivalente a cerca de £500 mil, ou US$633 mil em valores de hoje, após a abolição da escravidão, para indenizá-lo por perdas incorridas quando ele abriu mão de fazendas nas Índias Ocidentais.

"É indesculpável que um de nossos fundadores tenha lucrado com a escravidão e argumentado contra sua abolição na década de 1800", escreveu em artigo no jornal The Telegraph o executivo-chefe da Greene King, Nick Mackenzie.

No mesmo mês o Bank of England pediu desculpas pelos "vínculos imperdoáveis" entre seus ex-presidentes e diretores e a escravidão. A seguradora Lloyd’s of London desculpou-se por ter vendido cobertura de seguros a participantes no comércio escravista. A empresa disse em comunicado: "Foi um período hediondo e vergonhoso da história britânica e também da nossa".

Após a enxurrada de pedidos de desculpas veio uma reação contrária. Esta pareceu atingir o nível máximo em setembro de 2020, quando a National Trust, sociedade britânica de preservação do patrimônio nacional, divulgou uma lista de 93 de suas propriedades com vínculos com a escravidão e o colonialismo, entre eles a antiga residência no campo de Winston Churchill. Andrew Roberts, um dos biógrafos de Churchill, criticou "a excursão mais recente na seara ‘woke’" feita pela National Trust.

A série "Cotton Capital" do Guardian deixou os adversários ideológicos do jornal deliciados e também atraiu sua parcela de críticas. Alguns historiadores consideraram o esforço louvável, mas um pouco tardio. Outros elogiaram descobertas como a das ligações de John Edward Taylor com o comércio de escravos, mas disseram que as raízes escravistas de Manchester já eram fartamente conhecidas e que isso fazia a série "Cotton Capital" parecer uma denúncia gratuita.

"A alegação de que em Manchester nunca falamos sobre a escravidão me espanta", comentou Jonathan Schofield, guia de turismo e historiador da cidade. "O estranho é que o que não fazemos o suficiente é elogiar as coisas boas. Há uma casa em St. Ann’s Square, na cidade, onde Frederick Douglass viveu na década de 1840 e onde sua liberdade foi comprada por gente do norte da Inglaterra, principalmente da Grande Manchester. Por que as pessoas não andam falando nisso?"

Na realidade, muitos habitantes de Manchester dizem que aprenderam muito na adolescência sobre as tendências abolicionistas da cidade. Parece que todos sabem que durante a Guerra Civil americana um grupo de operários de um moinho de algodão se reuniu em um lugar chamado Salão do Livre Comércio para redigir uma carta ao presidente Abraham Lincoln, dizendo em essência "estamos do seu lado", apesar de o bloqueio imposto a bens vindos dos Estados Confederados da América ter levado ao fechamento de moinhos na cidade, desencadeando o que ficou conhecido em Manchester como a fome do algodão. O presidente se emocionou e respondeu à carta dos operários.

"Diante das circunstâncias", ele escreveu, "não posso deixar de enxergar as declarações decisivas dos senhores sobre a questão como uma instância de heroísmo cristão sublime que não foi superado em nenhuma outra era ou país."

Há uma estátua de Lincoln em Manchester hoje com trechos da carta reproduzidos numa placa no pedestal.

Não tem se falado tanto sobre lugares como o Royal Exchange, uma imensa catedral do comércio, com toneladas de mármore e altas colunas clássicas, situado a uma caminhada curta de distância da estátua. Houve época em que membros da câmara controlavam quase metade dos 130 milhões de fusos de algodão existentes no mundo.

Hoje o local sedia o Royal Exchange Theater, que parece um grande módulo espacial lunar plantado no meio do chão do piso térreo.

O único indício que se vê das origens escravistas do Exchange é um acréscimo recente ao espaço: um poema intitulado "Holding Space" escrito por Keisha Thompson, residente de Manchester de 33 anos. O poema está impresso sobre uma tela grande e fica pendurado dos dois lados das paredes do teatro. Os diretores artísticos o encomendaram da poeta há dois anos, e ela o escreveu depois de vasculhar os arquivos do Exchange.

Numa tarde recente Thompson estava perto de seu poema, entre os assentos de um café ao lado do teatro, onde pessoas circulavam antes do início de um espetáculo. Ela contou que quando era menina, vivendo em Manchester, seu pai lhe falou sobre os horrores do tráfico transatlântico de escravos. Seus pares sabiam pouco sobre o assunto, que não era mencionado na escola. Ela sabia, é claro, que Manchester enriqueceu graças ao algodão. A cidade chegou a ter mais de 2.400 moinhos de algodão, que a converteram na primeira cidade industrial do mundo e lhe valeram o apelido "Cottonopolis".

Por alguma razão, foi apenas mais tarde que o óbvio ficou claro: boa parte do algodão processado nessa cidade era colhido por escravos.

"Acho que a ficha demorou a cair porque Manchester tem fama de ser uma cidade que lutou pela abolição", ela disse. "Podíamos dizer ‘sim, fazíamos parte da indústria do algodão, mas combatemos a escravidão’."

O que Thompson e seus colegas da época não aprenderam na escola inclui a história excepcionalmente violenta da vida nas fazendas de colônias britânicas como Barbados, Jamaica e São Cristóvão e Neves. Para sufocar a ameaça sempre presente de uma rebelião, os castigos eram sádicos e frequentes. Na Jamaica, os escravos recém-chegados passavam tanta fome e eram tão explorados que metade deles morria em dois ou três anos, conforme Vincent Brown, professor de história em Harvard.

"O algodão era tão lucrativo que uma rotatividade alta na vida dos escravizados era vista como nada mais que o custo de se fazer negócios", ele escreveu em e-mail.

No início do século 19, o algodão cultivado por escravos era o cultivo comercial mais lucrativo do mundo, e o sul dos Estados Unidos tornou-se o maior exportador. Boa parte daquele algodão era enviado para portos de Londres, Bristol e Liverpool, onde era descarregado e enviado a moinhos. É nesse ponto que começa a participação de Manchester. Antes do algodão, ela uma minúscula cidade de província.

"Se você tivesse dito a um habitante de Manchester em 1780 que aquele lugar viria a ser conhecido como a segunda maior cidade da Inglaterra, ele ou ela teria gargalhado", disse Natalie Zacek, professora sênior de história americana na Universidade de Manchester. "O algodão possibilitou tudo por aqui."

Alguns dos moinhos de algodão hoje são atrações turísticas, incluindo o Quarry Bank Mill, que se espalha por uma área verdejante a 30 minutos de carro do centro de Manchester. Pode ser a antiga fábrica exploradora atroz de sua mão de obra mais bucólica do mundo.

Aberta em 1784 por um imigrante irlandês, Samuel Greg, seus trabalhadores eram em grande parte crianças que trabalhavam em turnos de 12 horas, seis dias por semana, e não eram pagas, exceto se fizessem horas extras. Um dos muitos objetos perturbadores expostos no local é um inventário em uma página da fazenda de Samuel Greg nas Índias Ocidentais, que detalha 146 "negros" no topo de uma lista de animais de criação, incluindo mulas, vacas e bois.

"É um registro muito brutal de pessoas vistas com objetos. É algo muito desumanizador e muito chocante de ser visto", disse Katie Taylor, da National Trust, proprietária da fábrica. "Mas é nossa responsabilidade mostrar a família da maneira mais transparente e honesta possível."

A exposição em Quarry Bank é muito mais tenebrosa hoje do que era quando gerações de alunos de escolas faziam visitas organizadas para o local no passado. Nicholas Draper, o historiador e escritor, disse que esse espírito de autoexame e transparência está se tornando uma norma cultural.

"Isso não se deve a pressão externa", ele disse. "É porque funcionários estão dizendo ‘não podemos mais continuar neste espírito de negação e ignorância intencionais’."

A Fundação Scott, proprietária do Guardian, disse que prevê investir mais de £10 milhões, ou US$12,8 milhões, em comunidades de descendentes ligadas aos fundadores do jornal. A editora chefe do Guardian, Katharine Viner, pediu desculpas em nome do jornal em comunicado em que lamentou que "nosso fundador e aqueles que o financiaram auferiram sua riqueza de uma prática que era um crime contra a humanidade."

Nada disso lisonjeia o Guardian, mas Wolfe-Robinson, a editora de "Cotton Capital", disse que não podemos escolher uma versão do passado baseada em que como ela nos faz sentir.

"Sabemos da história dos operários daqui que se manifestaram em solidariedade durante a Guerra Civil americana", ela disse. "Mas você sabia que o Guardian publicou um editorial dizendo que a eleição de Abraham Lincoln foi um ‘dia maligno’? Estamos acrescentando informação, estamos contextualizando. Isso não pinta uma imagem mais completa? Não significa que podemos ter um entendimento mais completo de nosso passado, e portanto de nosso presente?"

Tradução de Clara Allain

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