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Guita Grin Debert e Jorge Félix

Política Nacional de Cuidados não pode cair no familismo

Presença da família em políticas públicas cresceu nos últimos governos neoliberais

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Depois de um apagão de dados nos últimos anos, que provocou revisões estatísticas, o IBGE divulgou a Pnad do primeiro trimestre, atualizando números sobre o acelerado envelhecimento da população. São 33,1 milhões de idosos (60 anos ou mais) ou 15,1% do total de habitantes. Tão logo esses números vêm a público, um verdadeiro mantra é ouvido: o país está preparado? A resposta é sempre a mesma: não.

É preciso reconhecer que, desde a Constituição de 1988, o Brasil se mantém na vanguarda dos direitos da população idosa. A Política Nacional do Idoso e o Estatuto de Idoso são dos mais avançados no mundo. E mobilizaram, à época de suas elaborações, instituições governamentais, sociedade civil e movimentos sociais. Sabemos o quanto tem sido difícil ver a sua implementação. Apesar disso, é importante reconhecer que Conselhos de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa estão presentes em boa parte dos municípios, garantindo ou reivindicando programas para integrar pessoas idosas, inclusive nas universidades.

Contudo, essas iniciativas são voltadas para os segmentos com alto grau de autonomia funcional –para os que podem fazer exercícios em praias e praças, participar de excursões, estacionar em vagas reservadas, ir a atividades de lazer e cultura pagando meia entrada. Ou seja, a legislação fez a sociedade brasileira muito mais integradora dos considerados "jovens idosos". Porém, no que diz respeito à velhice dependente, é o inverso.

Essa situação precária no cuidado dos mais frágeis empresta importância relevante ao grupo de trabalho interministerial lançado em 22 de maio, em Brasília, com a missão de formular um diagnóstico e elaborar uma Política Nacional de Cuidados.

A discussão contemporânea sobre cuidado combina dois discursos. Por um lado, as dificuldades com o aumento da população idosa e, por outro, os problemas relacionados ao declínio da estrutura familiar tradicional.

Duas soluções contrastantes são dadas para a carência da oferta de cuidados. A primeira considera que essa provisão é uma tarefa da sociedade e que a responsabilidade principal é do Estado. A segunda advoga o papel tradicional da família, solução esta contestada em razão da proporção crescente de mulheres no mercado de trabalho e pelo fato de a renda familiar ser cada vez mais composta e descolada da figura do "homem provedor".

O sucesso da Política Nacional de Cuidados depende de não cairmos nem no familismo nem em políticas públicas que ignoram a nova dinâmica demográfica.

O familismo é o modo como a aliança entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo atribui centralidade à responsabilidade familiar no tratamento dos problemas que afligem a sociedade. A presença da família nas políticas públicas não é novidade, mas ela parece ter ascendido para o primeiro plano nos últimos governos neoliberais, simplesmente porque a ausência da família aumentaria os custos do Estado com a seguridade social. Daí o interesse que marcou o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, criado no governo Bolsonaro, no fortalecimento dos vínculos familiares.

A crítica à intervenção tida como exagerada do Estado é combinada com a volta e o recrudescimento das responsabilidades e dos valores familistas. Por essa perspectiva, o compromisso com o bem-estar do idoso seria da alçada da família, não da previdência pública.

Como está sendo revelado pelo Censo 2023, a diminuição da população significou a diminuição de nascimentos. A demanda de cuidados com a infância deve diminuir. A importante atuação dos cuidadores —sejam jovens ou mais velhos, sejam homens ou mulheres, sejam nacionais ou imigrantes— deve ser tratada com dignidade e com os merecidos salários.

O desafio para o Estado brasileiro, conforme já destacado por nós aqui nesta Folha ("Política Nacional de Cuidados é investimento em infraestrutura", 15/2/23), é resistir à tentação familista e aprimorar o olhar sobre a crise global do cuidado.

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