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Gaudêncio Torquato

A federalização das campanhas municipais

Notas mais altas sairão das duas bandas polarizadas

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Gaudêncio Torquato

Jornalista, escritor, professor titular aposentado da USP e consultor político

Na reta final do primeiro ano do governo Lula 3, começam a florescer no jardim das expectativas as sementes do pleito municipal de 2024. Ao se retirar da paisagem política nos fins do ano passado para passar uma temporada na Flórida, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sinalizava seu ocaso após a desastrada administração —que teve como ápice a malfadada política para enfrentar a pandemia de Covid-19. De Luiz Inácio Lula da Silva (PT), esperava-se o descortino de uma era de harmonia e paz, abençoada pela união dos brasileiros e sacramentada pelo refrão governista de "reconstrução nacional".

Hoje, a inferência que se extrai é a de que o Brasil continua dividido. As duas bandas —a bolsonarista e a lulopetista— incrementam suas divergências, ferindo-se na arena expressiva das redes tecnológicas. Os dois protagonistas principais se engalfinham, com acusações recíprocas. Bolsonaro faz visitas a correligionários, e Lula prepara-se para iniciar um périplo pelos estados após uma série de viagens internacionais para recuperar a força da identidade brasileira, então desmoralizada.

O presidente Lula (PT) e o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante o debate na TV Globo no segundo turno - Mariana Greif - 28.out.22/Reuters - REUTERS

As ações do Executivo em curso no Congresso Nacional, com atendimento ao pleito parlamentar por recursos e cargos na administração federal, mostram que Lula pavimenta, desde já, a estrada eleitoral. E até deve contabilizar o sucesso do programa de traslado de brasileiros e parentes da Faixa de Gaza. Um êxito. Bolsonaro, por sua vez, vai impulsionar o aríete de "destruição" do governo, avocando sua dubiedade na política econômica, com Lula e Haddad defendendo posições diferentes para o déficit zero do PIB em 2024 e denunciando as falas do presidente contra Israel na guerra contra o Hamas.

Emerge dessa guerra de narrativas a hipótese de que a campanha eleitoral de outubro do próximo ano será intensamente polarizada. Ou, em outros termos, federalizada. O plano federal dará o tom, e as tubas de ressonância das duas bandas deverão "canibalizar" o plano municipal. Claro, as propostas para melhoria na estrutura da saúde, na construção de casas, nos equipamentos da educação, na seara dos alimentos baratos, na locomoção urbana, na segurança pública, entre outras áreas, deverão lubrificar as campanhas, mas as notas mais altas sairão dos grupos polarizados.

O eleitorado observa a cena política com mais atenção. O afastamento, com restrições, que mantém em relação aos seus representantes, tende a dar lugar a uma aproximação, abrindo os sistemas cognitivos para uma percepção mais acurada de figurantes e candidaturas. O país avança, de maneira lenta e gradual, no terreno da racionalidade.

O populismo, claro, ainda deve ganhar algumas pitadas, aqui e ali, principalmente nas comunidade dos longínquos rincões, mas a teia de médias e grandes cidades será exposta a temas do momento, principalmente nos núcleos de defesa de valores da família. Aí podemos distinguir o contraponto entre as abordagens conservadoras e progressistas, com clara divisão de pontos de vista.

Estaremos sujeitos às promessas mirabolantes? Sim. Mas certamente cairão no poço do deboche social, como a promessa de campanha de Antônio Luvizaro ao governo do estado da Guanabara, nos idos de 1960: "Carros novos só podem entrar no centro pelos túneis novos; carros velhos entram nos bairros distantes pelos túneis velhos. Essa é minha proposta para o trânsito, uma solução rápida, prática e barata".

O fato é que o Brasil de final de ano já respira ares eleitorais, a mostrar que eleição de dois em dois anos é um atraso. No DNA de nossa política corre sangue patrimonialista, o que aponta para a figura do Estado como ente que deve abrigar a todos em seu seio por meio de empregos, espaços e poder. É o Estado como vaca leiteira. A cidadania é ocupada pela "estadania", como nos ensina o acadêmico de saudosa memória José Murilo de Carvalho.

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