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Lauro Gonzalez

Por que a segunda fase do Desenrola é lenta?

Sob diversas formas, exclusão digital prejudica implementação de políticas públicas

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Lauro Gonzalez

Professor da FGV/Eaesp e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV

O governo federal anunciou que pretende estender o programa Desenrola Brasil, inicialmente previsto para terminar no final deste ano, até março de 2024. Os números apresentados pelo próprio governo mostram que a segunda fase do programa, voltada à população de baixa renda, não decolou. Enquanto na primeira fase houve a adesão de quase 10 milhões de pessoas, na segunda o número de atendidos não passou, até o momento, de 1 milhão.

Relembrando: a primeira fase do programa teve início em julho de 2023 e contempla pessoas com renda mensal entre R$ 2.640 (dois salários mínimos) e R$ 20 mil, sendo que o valor máximo máximo da dívida a ser renegociada não pode exceder R$ 20 mil. Além disso, a primeira fase inclui a exclusão dos registros de dívidas de até R$ 100, a chamada "desnegativação". Já a segunda fase tem como foco as dívidas de até R$ 5,000 contraídas por pessoas que ganham no máximo R$ 2.640 ou que estejam inscritas no cadastro único (registro de pessoas em situação de pobreza ou extrema pobreza). Como a segunda fase busca atender a população de baixa renda, o governo constituiu um fundo garantidor de R$ 8 bilhões para as renegociações desse público. Prova de que a segunda fase anda em marcha lenta é o fato de que apenas 10% do valor do fundo já foi utilizado.

Desenrola Brasil já renegociou R$ 29 bilhões em dívidas e deve ter prazo prorrogado para março de 2024 - Gabriel Cabral/Folhapress

Mas o que explica essa lentidão? Antes de buscar respostas vale dizer que, para quem acompanha de perto a dinâmica de funcionamento do mercado de crédito e a lógica das políticas públicas, não há surpresa. A segunda fase do programa sempre foi complexa do ponto de vista de implementação, ou seja, da capacidade de tirar do papel e fazer chegar à população as diversas medidas e programas formulados pelo governo.

Enquanto na primeira fase do programa os bancos tomavam a dianteira e, de maneira ativa, iam atrás de clientes devidamente selecionados, na atual fase cabe ao consumidor ir atrás da renegociação através dos canais digitais. Quantas leitoras ou leitores já navegaram na plataforma Gov.br? Não é tarefa fácil, e a dificuldade é ainda maior para a população de baixa renda.

São os obstáculos trazidos pela exclusão digital. O primeiro deles é a qualidade da conexão à internet nas periferias e nas áreas de maior pobreza das grandes cidades. Dados apontam que, na população de baixa renda, apenas um em cada quatro brasileiros tem acesso regular à internet. O segundo obstáculo é o preço elevado dos pacotes de dados, em especial os pré-pagos. O terceiro se relaciona à qualidade dos aparelhos móveis, cujo desempenho pode prejudicar o acesso às plataformas disponibilizadas pelo Desenrola. O quarto obstáculo se forma a partir dos problemas relacionados ao manuseio do celular, uma vez que as pessoas podem ter dificuldade para baixar aplicativos, navegar etc. Em suma, a exclusão digital, sob suas diversas formas prejudica a implementação de políticas públicas. Durante o pagamento do auxílio emergencial, por exemplo, um contingente expressivo da população de baixa renda não conseguiu solicitar o auxílio devido aos mesmos obstáculos acima descritos.

Não basta estender o prazo do Desenrola, é preciso engajar mais atores na implementação do programa. É fundamental a participação dos burocratas de nível de rua, que têm contato direto com os usuários de serviços públicos. Os bancos, sobretudo os públicos, precisam mobilizar seus agentes de crédito e microcrédito em um processo de orientação ativa dos usuários que podem se beneficiar da renegociação.

Esses agentes podem ainda contribuir para aprimorar a plataforma de negociação já montada que, aliás, pode se tornar o legado do programa no longo prazo. Relembrando o clássico livro "Implementation", de Pressman e Wildavsky (1973): grandes expectativas em Brasília podem gerar decepção nos acessos frustados à plataforma Gov.br.

Por fim, é preciso reconhecer que a lentidão atual não anula os méritos do Desenrola, que deve ser visto como uma política pública de alívio financeiro de curto prazo, não como um programa de combate estrutural ao superendividamento.

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