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Carlos Augusto Calil

O poder público e o patrimônio histórico

Submeter a política de preservação à tutela do Legislativo paulistano é retrocesso inconcebível

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Carlos Augusto Calil

Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, é ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo (2005-12); presidente do Conselho de Administração da Sociedade Amigos da Cinemateca Brasileira

Em 21 de dezembro, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou o polêmico projeto de lei 586/2023, referente à revisão da Lei de Zoneamento, que vinha sendo discutida há meses. Sem prévio aviso, acrescentaram-se artigos que retiram a autonomia do Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), sob o pretexto de que a ação de tombamento altera "parâmetros urbanísticos de matéria afeta ao código de edificações, legislação de parcelamento e uso de solo". Em manobra inesperada, os artigos 89, 90 e 91 foram apresentados sem o tempo, a publicização e a transparência devidas em vista do impacto de seu conteúdo.

A justificativa é equivocada, uma vez que estamos diante de valores distintos: a preservação do patrimônio, na esfera dos direitos culturais, relaciona-se à proteção dos bens materiais e imateriais "portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira" (art. 216 da Constituição Federal), enquanto a definição de parâmetros urbanísticos do zoneamento disciplina o uso da propriedade imobiliária segundo o regramento legal. O zoneamento regula o direito geral e abstrato de construir; o tombamento garante a preservação do status quo de um bem ou conjunto de bens individualmente considerados.

O parcelamento, uso e ocupação do solo —que dispõem sobre as atividades como comércio, indústria, serviços, residências— deverão "proporcionar a melhor relação com a vizinhança" (definição da própria prefeitura). Por outro lado, as ações de preservação da memória urbana coletiva só terão sucesso se forem abraçadas pela população que nelas reconheça seus valores culturais. Sua potência está justamente na convergência e harmonização das iniciativas.

O zoneamento e o tombamento não são incompatíveis, ambos instrumentos de políticas públicas com objetivos diversos e complementares; o primeiro disciplina o uso de qualquer propriedade, ao passo que o segundo disciplina e preserva o valor cultural de um determinado bem, ou conjunto de bens, de acordo com valores que transcendem o direito individual de propriedade e se inserem no âmbito cultural e histórico de toda a sociedade.

A atuação do Conpresp no plano municipal e do Condephaat, no estadual, decorrem da proteção assegurada pelo decreto-lei 25, de 1937, no âmbito federal. Esse diploma foi desenhado em São Paulo, por Mário de Andrade, o primeiro "secretário municipal" de cultura. A contribuição desse homem extraordinário se dava então na cidade e no país.

O descortino dele possibilitou que se salvassem do abandono do poder público e da sociedade da época os extraordinários monumentos barrocos de Minas Gerais, Bahia e neoclássicos do Rio de Janeiro, além de focar a preservação da paisagem natural e as manifestações de cultura imaterial. Seu legado é inestimável para a cultura do Brasil.

A proteção desses bens no âmbito federal se deu na esfera do Executivo, pela atuação do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), menos permeável às pressões de interesses localizados. Submeter a política de preservação do Conpresp à tutela da Câmara Municipal é retrocesso inconcebível. Submeter a ação do Executivo municipal à tutela do Legislativo é negar o princípio republicano.

Situação semelhante ocorreu em 2007. Após uma decisão inédita e necessária do Conpresp, que regulamentou as áreas envoltórias do Eixo Histórico-Urbanístico do Ipiranga e do Parque da Aclimação, além de tombar o Moinho Gamba, na Mooca, remanescente da vocação industrial do bairro, a Câmara Municipal, pressionada pela indústria da construção civil, decidiu transferir o Conpresp para sua órbita.

Reunidos em torno do então presidente Antônio Carlos Rodrigues, todos os partidos fecharam questão na matéria. O jornal O Estado de S. Paulo publicou a respeito um editorial que definia a operação como a tentativa da Câmara de transformar o Conpresp "num balcão de negócios".

O então prefeito Gilberto Kassab deu respaldo à decisão da Secretaria Municipal de Cultura e exerceu a política no melhor estilo: desarmou os espíritos, manteve as competências e o Conpresp no seu lugar. Convidou os vereadores e representantes da indústria a participar da elaboração da política de patrimônio no plenário do próprio Conpresp. Com habilidade, Kassab contornou o conflito que surgira entre o interesse público e o privado.

O atual representante da Câmara Municipal no Conpresp, vereador Rodrigo Goulart (PSD), é o relator deste projeto de lei recentemente aprovado. Herdeiro do mandato do pai, o suplente de deputado federal Antônio Goulart, ele conhece perfeitamente a natureza do conflito, os meios de negociá-lo e a importância de preservar o que resta do caráter de uma cidade desfigurada pela especulação imobiliária.

O prefeito Ricardo Nunes (MDB) tem agora a oportunidade de imitar o gesto de seu antecessor e aliado político. Pode vetar na íntegra os artigos e emendas relativas ao tombamento que entraram clandestinamente num projeto de lei sobre zoneamento. Restituirá desse modo as competências legais e a simetria dos Poderes, em nome do interesse coletivo.

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