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José Luiz Portella

A esquerda não morreu, amancebou-se

Entrou no jogo da narrativa, que produz interpretação sempre a seu favor, assim como seu oposto

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José Luiz Portella

Engenheiro civil, é doutor em história econômica (USP) e pesquisador do IEA-USP (Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo)

Diferentemente do que afirmou o professor Vladimir Safatle nesta Folha ("Esquerda morreu e extrema direita é única força real no país", diz Safatle; 24/2), a esquerda não pereceu, ela se amasiou com o sistema. Com o sistema que combate.

A esquerda buscou um lugar ao Sol, e converteu a liça por um mundo socialmente mais justo pelas delícias do poder. Ela vai ao Lide de João Doria no exterior.

Pior: entrou no jogo da narrativa, que produz interpretação sempre a seu favor, como o faz a direita mais anacrônica e radical.

A direita, que acusa a esquerda de incoerência, jamais comentou que um dos seus maiores ícones, o neoliberal Milton Friedman, um dos pais fundadores da ortodoxia da Escola de Chicago, defensor da liberdade coletiva contra a escravidão totalitária, defensor das liberdades individuais, amancebou-se com Augusto Pinochet, um dos mais sanguinários ditadores da triste história sul-americana. Destruidor da liberdade no Chile, com seus "Chicago boys", que ignoraram, solenemente, a repressão à liberdade chilena.

Manifestantes a favor e contra o impeachment de Dilma Rousseff (PT) se dividem na Esplanada dos Ministérios durante votação na Câmara - Diego Padgurschi-17.abr.16/Folhapress - Folhapress

A esquerda, que assistiu à tal demonstração de cinismo explícito, repetiu com ardor a história, não mais como tragédia, mas já como farsa —não só com relação a Cuba, mas também com a Venezuela; além do silêncio sobre o que aconteceu com Angola e o líder do Movimento de Libertação, que produziu um "Movimento de Não Libertação", décadas de canhota ditadura.

Maior arauto da direita, recentemente, foi a presidenta Dilma Rousseff (PT) com sua sucessão de erros de administração e temperamento, que culminaram com a deposição por intermédio de um processo legal e que ocorreu na presença de oito ministros do STF indicados pelo PT. Não foi golpe.

Houve fragilidade administrativa e política da presidenta, que só foi reeleita porque Lula aceitou-a como candidata à reeleição com a tese do "ela tem direito". Todo presidente eleito possui o direito enquanto vigorar o instituto nefasto da reeleição —que só produziu males desde sua gênese.

Porém, caberia ao partido que a indicou verificar a propriedade de reelegê-la. Não foram poucos que alertaram Lula antes do equívoco; todavia, com a percepção de ser demiurgo, ele a bancou. E não pediu desculpas.

Foi um genocídio contra a esquerda.

Os sucessivos enganos de Dilma passaram-se por incapacidade da esquerda em buscar um projeto de nação e um Brasil menos desigual —iniquidade, chaga profunda em constante hemorragia que nos aflige.

Lula, o homem do "estou convencido" sempre do que pensa, elegeu Jair Bolsonaro. Lula e tudo que envolveu o PT e seus aliados na Petrobras.

Bolsonaro, cavalheiro, devolveu à Presidência a Lula, com as bizarrices de sempre. Com destaque para a posição com relação à vacina e o desprezo pelo Nordeste, que forneceu vitória a Lula.

Divirjo totalmente da forma que Safatle imagina como seria a transformação que a esquerda deveria desempenhar o poder: um projeto autoritário, resvalando para um partido único, aquele sempre dono da verdade, do melhor caminho e que será dirigido por um "soviete" de intelectuais, mais iguais do que os outros, proprietários da "Verdade Revelada" que implantarão um "mundo supostamente melhor". O comunismo, que nunca chegou ao seu estágio final de dissolução do Estado, jamais forneceu ao mundo a igualdade com liberdade.

A solução aventada no "Alfabeto das Colisões" é a hipocrisia como criação de si, a sustentar libertação do povo, por intermédio de processo de escravidão, comandado por um partido único, "salvador".

Sustentada pela realidade do "Fato Social" do sociólogo Émile Durkheim, a resolução é a articulação do Estado e do mercado, com parte ancorada na ideia da "embedded autonomy" ("autonomia inserida") do professor Peter Evans, respeitando as peculiaridades do Brasil, caso a caso, sem a farsa da desoneração que não gera empregos, sem a farsa de mais de R$ 500 bilhões de estímulos e isenções —a maior parte para quem não precisa, como o Simples para quem fatura R$ 400 mil por mês— e, sim, um vigoroso plano de investimentos, acompanhado de uma política totalmente focada na eliminação da extrema pobreza. Possível em quatro anos.

Cortam-se todas as desonerações, estabelece-se um teto para elas, e o Congresso e o Executivo discutirão a repartição, à luz do Sol, do valor estipulado.

Sem privilégios, de esquerda ou de direita.

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