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Gerson Leite de Moraes

Entre o arrebatamento e o apocalipse

Nonsense à parte, trata-se de obra aberta para projetos políticos reacionários

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Gerson Leite de Moraes

Doutor em ciências da religião (PUC-SP) e filosofia (Unicamp), é professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie

Caro leitor, você deve ter acompanhado pelas redes sociais a conversa inusitada entre as cantoras Baby do Brasil e Ivete Sangalo no Carnaval de Salvador. Convidada para fazer um dueto com Ivete no sábado (10), Baby do Brasil usou o microfone para exercitar sua retórica de pastora evangélica, afirmando que "todos deveriam estar atentos porque entramos em apocalipse, e o arrebatamento deverá acontecer entre cinco e dez anos".

A resposta de Ivete foi ainda mais surpreendente. Disse a baiana "que não deixaria o apocalipse acontecer". Esse diálogo maravilhoso, para alguns, e "sem pé nem cabeça", para outros, poderia ter acontecido numa igreja, num botequim ou num bloco de Carnaval —como de fato ocorreu, prova viva de que a cultura brasileira é de uma riqueza sem igual.

Ivete Sangalo canta 'Macetando' e tem debate sobre apocalipse com Baby do Brasil, no Carnaval de Salvador
Ivete Sangalo canta 'Macetando' e tem debate sobre apocalipse com Baby do Brasil, no Carnaval de Salvador - Reprodução/Bandplay - Reprodução/Bandplay

Ao falar sobre o arrebatamento e o apocalipse, Baby despertou a curiosidade de muitas pessoas. O arrebatamento aparece num texto do apóstolo Paulo, em que o mesmo, acreditando que veria ainda em vida a segunda vinda de Cristo, desta vez para o juízo final, afirma que os crentes seriam arrebatados, conforme 1 Tessalonicenses 4.16-17. O assunto em questão está no campo daquilo que os teólogos chamam de "escatologia", expressão originada de duas palavras gregas, "eschatós" e "lógos", que significa "estudo das últimas coisas".

Baby do Brasil está numa chave interpretativa de uma corrente majoritária, típica do pentecostalismo brasileiro e de outros grupos evangélicos, que acreditam no premilenismo (baseado em Apocalipse 20). Vale ressaltar que este também possui suas variações, o premilenismo histórico e o dispensacionalista, por exemplo. Para essa reflexão não virar um tratado teológico enfadonho, vou misturar e sintetizar as principais ideias das subdivisões da corrente premilenista.

Precedido por guerras, fome, terremotos, epidemias e uma grande tribulação, o arrebatamento e a segunda vinda de Jesus Cristo acontecerão com o desaparecimento gradativo dos crentes, literalmente abduzidos por Cristo (os filmes da franquia "Deixados para Trás" retratam isso), mas que voltariam com ele na sequência para reinar sobre a Terra por aproximadamente mil anos, através de um governo político estabelecido na cidade de Jerusalém —fato este tão miraculoso que faria muitos judeus reconhecerem o senhorio de Jesus, convertendo-se ao cristianismo e reconhecendo-o como o Messias.

Esse reino político de Cristo, provavelmente com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, seria um período de grande prosperidade econômica. Amigo leitor, você pode achar tudo isso uma grande conversa fiada, mas perceba como se reflete em alguns comportamentos e certas opções políticas feitas por grupos religiosos no Brasil nos últimos tempos. A nação de Israel, comandada atualmente por Binyamin Netanyahu e seus aliados ultraortodoxos, é peça central nesse jogo apocalíptico.

Agora você compreende por que lideranças religiosas fundamentalistas querem tirar as embaixadas de Tel Aviv e colocá-las em Jerusalém? Entende por que religiosos cristãos fundamentalistas carregam orgulhosos a bandeira de Israel? A volta de Cristo, para determinados grupos religiosos, é uma obra aberta, que encerra parcialmente a história humana, abrindo um tempo novo de oportunidades para o exercício político dos crentes, que certamente querem superar as formas e os sistemas de governo, julgados por eles como obsoletos (monarquia, aristocracia, politeia, democracia, República, presidencialismo, parlamentarismo). Dessa forma, inaugurar-se-ia uma espécie de "evangelicocracia" na face da Terra.

Entre o arrebatamento e o apocalipse, esconde-se um projeto de poder político. O teoconservadorismo dos grupos fundamentalistas não é ingênuo, muito menos inofensivo. Se o encontro de Baby e Ivete foi algo excêntrico, imagine Jesus discursando na abertura da Assembleia Geral da ONU, sendo observado atentamente por Milei, Erdogan e Netanyahu. Que Deus nos proteja dessa cena apocalíptica.

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