Descrição de chapéu Estados Unidos alimentação

A breve vida de um tomate

Tinha ali, na cena que acompanhava parada no semáforo, a melhor metáfora para a Big Apple

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Lucrecia Zappi

Escritora, tradutora e jornalista, é autora dos romances "Onça Preta", "Acre" e "Degelo". Prepara novo livro para 2025.

Nova York

O tomate atravessava a rua e veio um carro em sua direção. Achei que soubesse de cor a breve vida de um tomate urbano. Olha o carro! Onde? O fato é que o carro freou a tempo, o tomate já tinha voado da sacola, ninguém sofreu um arranhão, mas o mundo parou.

Foi um acidente, era essa a expressão constrangida no rosto do entregador, que recolheu a fruta, mas sem saber o que fazer. Pedestres em seus celulares e corredores diminuíram o passo. Ninguém queria um desvio em um dia gelado de março, apesar do sol idílico aquecendo os ânimos e a primavera já dobrando a esquina, mas a dúvida coletiva lhes dizia respeito.

Tomates expostos em uma feira de alimentos em Ventura, na Califórnia - Robyn Beck - 14.set.23/AFP

A regra dos cinco segundos é um mito, pensei. Não é surpresa alguma que as pessoas tendam a resgatar mais rápido um chocolate do que um pedaço de brócolis que caiu no chão. Se a mercadoria está intacta, deveria voltar para a sacola.

O cara do jogging parou na frente do funcionário do supermercado. "Essa cidade está infestada de ratos, então joga logo esse tomate no lixo, se não quiser ser responsabilizado por alguém contrair leptospirose ou outra doença fatal", ele gritou.

Uma mulher cheia de sacolas discordou. "O que isso tem a ver com sua neurose?"

"Minha neurose?"

"É sim senhor. Jogar comida fora, com tanta gente passando fome? Nova York é uma piada."

"A senhora passou do ponto."

O povo foi se juntando e o empregado, já bastante encolhido, levou o tomate contra o peito, em um gesto espontâneo. Era como se protegesse o coração. Ou o próprio emprego.

Os pedestres o encararam, desafiadores, em duas torcidas rivais. Na cultura norte-americana, as fronteiras pessoais são bem demarcadas, mas em Nova York, opinião compartilhada em voz alta não tem limites. Já se discutia a fome na África, quando a mulher do time de não jogar comida fora, argumentou que leptospirose não era nada em comparação a um tomate apodrecido, produzindo metano, o gás com efeito de estufa mais potente que o dióxido de carbono.

Um casal com um cachorrinho aplaudiu.

Eu acompanhava a cena parada no semáforo, esperando o sinal verde para atravessar. Já pensava em perguntar, para apaziguar a animosidade em torno do incidente, se conheciam a piada do tomate. Não dava para comparar com a versão local: "Por que o frango atravessou a rua?" Por se tratar de um frango ianque, é de se adivinhar que a resposta seja linear, prática e nada esmagadora: para chegar do outro lado.

Como se lesse meu pensamento, com seu desafeto na mão, o homem da entrega cruzou a via, decidido. Pareceu que ia ao meu encontro porque, casualmente, do meu lado havia uma lixeira. Pedi que me desse a fruta.

"Não posso, é contra as regras."

"Quais regras?"

"Higiene."

"Vou colocar minha mão bem embaixo da sua", eu disse. "Quando o senhor deixar cair, eu pego."

"Dê-me licença."

Não saí do lugar, já com as mãos em posição de rede, e ele fez um não com a cabeça. Eu estava atrasando a sua manhã. E a dos outros.

Íamos nesta troca teimosa, e alguém teve a ideia de gritar que se ia levar o tomate, teria que pagar, mas o corredor hipocondríaco matou a charada em meu favor, ao dizer que era um absurdo ter que pagar para contrair leptospirose.

Melhor ela levar de graça, ratificou, em seu bom senso autoproclamado, antes dar as costas e seguir no jogging.

O entregador, consternado, deixou o tomate cair no lixo, ou na palma da minha mão.

Segurei triunfante o pomo da discórdia e, como uma maçã envenenada, o veneno se espalhou na minha mente: tinha ali a melhor metáfora para a Big Apple, e me senti um gênio. O desperdício de alimentos, desde a energia gasta no cultivo, inclusive água, sem falar na embalagem e no maldito transporte ineficiente de princípios higiênicos.

O casal com o cachorrinho voltou a aplaudir, puxando uma salva de palmas geral, e percebi que o ajuntamento era contra o entregador, ou o inimigo moral imaginário. A cena pouco tinha que ver com fome, rataria ou Oxóssi, o orixá da fartura.

Na cozinha, abri a torneira, e fiquei acariciando o tomate sob a água, pensando como aquela "coisa rechonchuda com umbigo" (seu significado em náuatle, a língua antiga dos astecas) tinha sido capaz de instigar reações furiosas sobre o certo e o errado.

Fatiei o tomate, meio triste porque já sentia um certo apego a ele, à sua personalidade dócil e sabiamente silenciosa e resignada com seu destino. Coloquei-o no prato. Usei meu melhor azeite e duas pitadas de flor de sal sobre as rodelas. Era todo um banquete vermelho suculento.

Ao provar, um gosto distante da infância invadiu minha boca, fez minha língua buscar nos cantos uma acidez delicada. Tinha algo doce também, perdido há muito tempo. Decidi comer bem devagar, absorvendo o sol da manhã, a quietude da cozinha, distante da hostilidade das ruas.

Voltei a pensar no sadismo do veículo acelerando na direção da fruta indefesa, e já ouvia a voz fininha dela: "Carro? Onde?". Ocorreu-me perguntar a diversas pessoas se conheciam a piada. Não. Nunca souberam de tal façanha épica, de um tomate atravessando a rua.

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