Descrição de chapéu
Lucrecia Zappi

A noite americana

Éramos como um casal íntimo que só poderia ter surgido do caos, da escuridão

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Sentei no canto, observando a plateia desvanecer na sala de cinema, feliz com meu assento contra a parede e o lugar vazio ao meu lado. Sempre fui uma cinéfila territorial, ainda mais naquela tarde, porque queria absorver a joia que estava por começar, "A Noite Americana" de François Truffaut, um filme cuja história é a produção de um filme, entremeado pelas relações humanas em um set de filmagem, mas que também expõe a criação do cinema em toda a sua beleza.

A projeção já tinha começado, quando percebi um vulto, com uma caixa de pipoca e refrigerante. Com licença. Desculpe. Com licença.

Claro que decidiu sentar-se ao meu lado, apesar de outros lugares vagos, e foi tirando lentamente o casaco, logo organizando seu arsenal de gulodices. Notei que puxava do bolso uns saquinhos de bala e eu já antecipava o ruído do celofane amassando infinitamente.

Veio o esbarrão acidental, logo a briga sutil do braço da poltrona que ele venceu, seu celular na mochila aberta no chão com a tela iluminada, em seguida a respiração pesada do desconhecido e a pipoca amanteigada que ele virava na boca.

O hedonista inconveniente deu a primeira gargalhada e decidi que não implicaria mais com ele, até porque a cena no filme era mais ou menos engraçada e tentei rir junto, apostando em uma trégua. Lembrei que a tolerância é uma virtude, e ele não sequestraria a minha atenção. Afinal de contas, uma das estranhas magias de estar em uma sala de cinema é a experiência compartilhada com desconhecidos.

Talvez tivesse me tornado uma pessoa controladora em minha própria casa. Ou solitária demais para buscar companhia na escuridão. Não. Ganhava a vontade imensa de uma tela grande, onde o filme me absorveria. Foi por isso que fui ao cinema. Depois bateu também a vontade súbita e irresistível de esganar meu companheiro de assento.

Considerei a diferença das relações sociais estabelecidas na penumbra e plateias em qualquer teatro. Veio uma memória distante, o escuro como o refúgio de muitos jovens, o primeiro beijo furtivo no cinema e, como se o filme me acompanhasse, surgiu o comentário direto da tela: "A adolescência só deixa boas lembranças para adultos com má memória". Daí eu ri. E ele gargalhou.

Jacqueline Bisset e François Truffaut nas filmagens de "A Noite Americana" (1973) - Divulgação

Seu agito ruidoso tinha roubado a minha atenção. Abriu um pacote de balas, elas caíram no chão e pressionei o dedo sobre a orelha para tentar ignorá-lo. Com uma certa irritação percebi que o estranho ao meu lado ganhara mais importância que as imagens diante de mim.

Éramos, no melhor dos casos, como Eros e Psiquê, uma troca íntima no escuro, mesmo que sentisse uma profunda antipatia por aquela pessoa que gargalhou mais uma vez durante uma cena que nem era exatamente engraçada, onde o ator Jean-Pierre Léaud avançava de um ponto a outro.

Colecionava diversos monólogos internos, de como expressaria a minha queixa, mas de repente não aguentei e mandei o cara calar a boca. Um silêncio redundante foi sua resposta, seguido de mais risadas retaliativas. O filme foi virando um pesadelo porque não terminava mais. Queria que a sala se iluminasse de uma vez para dar cara àquele indivíduo.

Como Psiquê, busquei adquirir a consciência das coisas na luz acesa. Era como o efeito da "noite americana", uma cena noturna filmada durante o dia com um filtro para escurecê-la. Como uma escuridão tão ilusória e imperfeita quanto as relações humanas. Vieram os créditos e por fim a sala se iluminou.

Ao encarar o homem ao meu lado, ele sorriu para mim como uma criança. Para minha surpresa, sacudiu uma das mãos para o alto, excitado, e um leve fio de saliva escorreu pelo canto da boca. Teria algum transtorno mental, mas também parecia ser a pessoa mais feliz da plateia.

Com licença, obrigado, ele disse. E me abraçou, selando nosso companheirismo. Fiquei desarmada, envergonhada das minhas impressões mesquinhas. Ao sair do cinema, ainda ouvia seu riso explosivo e solitário. A tarde estava cinza, granulada, e a sensação era a de caminhar pela rua como se estivesse dentro do filme, entre os personagens excêntricos e atribulados à beira da realidade. Era também como estar sob o efeito de uma noite americana.

Ao entrar no metrô da esquina, lá estava ele.

Gostou do filme? Foi o único que consegui perguntar, forçando simpatia.

Com licença, obrigado, ele repetiu, com seu sorriso eterno. Eu te ajudo, ele disse, indicando as escadas.

Segurou meu cotovelo e eu deixei. Descemos devagar a escadaria da linha 1. Éramos como um casal íntimo que só poderia ter surgido do caos, da escuridão, e, em nosso caso, da noite que foi fabricada no dia.

Tomamos o mesmo trem e saí duas estações depois. Ao olhar para trás, ele acenou para mim do vagão, ainda segurando o copo de refrigerante. Considerei se ele saberia voltar para seu destino, mas o vagão já tinha se fechado e o trem começara a acelerar. Fiquei ali parada, comovida, sem entender direito o que tinha acontecido.

"A vida é muito mais imaginativa do que nós". Outra latente do filme de Truffaut que não saiu da minha cabeça conforme caminhei para casa.

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