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Paulo Lotufo

A hora e a vez da ecoepidemiologia

Aquecimento global exigirá novos paradigmas de contenção a doenças

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Paulo Lotufo

Epidemiologista e professor titular de clínica médica da Faculdade de Medicina da USP

A perspectiva de novas pandemias traz à tona ações de vigilância sanitária com nomenclatura militar, como "alerta", "sala de situação", "restrição" e "bloqueio", todas dirigidas a um inimigo: o patógeno. Se epidemias são enfrentadas com enfoque militar, a maioria das doenças, pela força dos determinantes sociais e ambientais para seu controle, implica ação civil com enfoque nos biomas e na organização da sociedade. Essa é a premissa da ecoepidemiologia, aqui apresentada.

Hoje, o principal risco de novas doenças e agravamento das existentes é o aquecimento global. No Brasil, a onda de calor de novembro de 2023 foi inédita e poderá se repetir. No hemisfério Norte, a frequência de ondas de calor nos anos 2020 foi o dobro do que nas décadas anteriores e com duração três vezes maior.

A possibilidade de ocorrer uma próxima pandemia aumenta 4,2% a cada ano, segundo estimativa de um estudo do CDC (Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos Estados Unidos) - Phil Noble - 03.ago.20/Reuters - REUTERS

O impacto de 1ºC de aumento médio na temperatura nas ondas de calor amplia em 2,1% a taxa de mortalidade cardíaca. Secas e inundações provocadas pelo aquecimento global alteram o equilíbrio de biomas com a proliferação de vetores de doenças, caso do Aedes aegypti, tendo como decorrência o aumento da dengue. Ao contrário da crença negacionista do aquecimento global, um estudo com avaliação por décadas das temperaturas nos oceanos e da incidência de dengue mostrou que o aumento da temperatura é determinante para essa virose.

Ainda no âmbito planetário, guerras indefinidas (Congo, Ucrânia, Palestina, Mianmar) infligem não somente mortes de combatentes e civis nas áreas beligerantes como também a distância. A pandemia mais letal na era moderna pela influenza H1N1 começa em 1919, após a Primeira Guerra Mundial. No momento atual, além de guerras intermináveis, há as migrações humanas, que ao serem criminalizadas e combatidas criam fluxos sem qualquer controle sanitário —como o descrito em Darién, no Panamá, local propício para novas epidemias.

A confluência de beligerâncias e migrações no planeta permite especular a emergência da malária urbana. Explica-se essa hipótese porque o Anopheles stephensi, o mosquito que transmite malária em meios urbanos, antes restrito à Índia e à Arábia Saudita, já se encontra na Etiópia e em Gana.

Hoje, a afirmativa "malária urbana" soa como "inacreditável", talvez como também soou há 40 anos dizer que a dengue se espalharia pelas Américas.

No Brasil, como em qualquer outro país, a vigilância epidemiológica se orienta pela divisão político-geográfica em estados e municípios. No entanto, no contexto da epidemiologia, os biomas e a organização da sociedade têm peso maior na determinação de doenças. O aprofundamento do estudo da epidemiologia nos nossos sete biomas e no ecossistema costeiro-marítimo será crítico para que possamos antecipar novos riscos e reduzir o impacto de enfermidades já conhecidas.

Nesse aspecto, os corredores bioceânicos, que reduzirão o distanciamento do Brasil com os países asiáticos, trarão novos desafios à epidemiologia. A construção da ponte em Guajará-Mirim (RO) sobre o rio Mamoré, em direção à Bolívia, exigirá esforço de monitoramento inédito de novos vetores que alcançarão os biomas amazônico e do cerrado vindos do altiplano boliviano.

A saúde humana não poderá ser abordada isoladamente. A saúde animal precisa estar integrada, não somente por causa do surgimento de zoonoses, mas porque situações de doenças na pecuária conduzem a risco humanos, como já se observa na influenza H1N5, a gripe aviária.

Ao mesmo tempo, a saúde do ambiente é fundamental; além da poluição atmosférica, temos os danos pouco comentados provocados pelos plásticos. Além de doenças pulmonares, a presença de compostos de plástico em lesão arterial pela aterosclerose aumenta em quatro vezes o risco de infarto do miocárdio.

Para atender as expectativas de uma vida com menos doenças, será fundamental integrar em ações conjuntas, perenes e organizadas, por biomas ou por corredores ambientais, saberes além dos próprios da epidemiologia, que precisa unificar as ações de saúde humana, animal e ambiental. Este será o desafio da ecoepidemiologia nos tempos atuais.

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