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Álvaro Pereira do Nascimento

O funk dos opróbrios exalta o Almirante Negro

João Cândido vive saudável imortalidade graças a detratores da Marinha

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Álvaro Pereira do Nascimento

Professor titular e pesquisador de história (UFRRJ/CNPq), é autor de "João Cândido, o Mestre-Sala dos Mares" (Eduff, 2020)

No dia 5 de junho de 1994, Jorge Amado publicou imenso artigo nesta Folha afirmando que seu indicado era um péssimo candidato à Academia Brasileira de Letras ("Viva João Ubaldo e o povo de Itaparica"). Tímido e vaidoso, não cumpria os protocolos de campanha orientados por Amado, que dizia: "Liga, João!".

E João Ubaldo Ribeiro, aos empurrões, tornou-se imortal —anos antes de desaprovar leis de cotas.

Outro João, um gaúcho negro, permanece insepulto por empurrões ressuscitadores. Declarado inimigo público e perigosa ameaça à Marinha de Guerra, é perseguido por oficiais há 114 anos. Vive uma saudável imortalidade graças, em parte, a esses detratores.

O marinheiro gaúcho João Cândido - Creative Commons - Creative Commons

Recentemente, o almirante Marcos Sampaio Olsen, comandante da Marinha, chamou João Cândido de "figura abjeta" na Câmara dos Deputados e condenou o projeto de lei que inclui o nome do Almirante Negro no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. João Cândido, o insepulto, "agradece". Ele já está nos livros de história.

Outros oficiais fizeram o mesmo na imprensa desde 1910: "lambe-botas de oficiais", "figura imperfeita" e "boçal" eram alguns dos impropérios. Alguns foram acusados pelo jornalista Aparício Torelly, o Barão de Itararé, de o raptarem e o agredirem. Eram cultos e fluentes em diferentes línguas, presentes às mesas de autoridades pelo mundo, e trajavam o dólmã da Marinha. Como um reles marujo poderia ser aclamado almirante por populares e parte da imprensa?

O comandante Olsen (equivalente ao ministro da Marinha até o governo FHC) mostrou-se quando sua virulenta carta foi lida na Casa do Povo, em tom idêntico ao dos colegas que o antecederam. Uma velharia de termos, sem igual: "opróbrio", "abjeto" e outros pouco lembrados no dia a dia; embora respeitáveis, defenderiam os imortais Jorge e João.

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O almirante Marcos Sampaio Olsen, comandante da Marinha - Pedro Ladeira/Folhapress) - Folhapress

O almirante Olsen entrará para a história por um tiro no próprio pé: li e assisti artigos e noticiários em jornais, telejornais e rádios combatendo seu texto. De bandeja, levou toda a Marinha, que agora está sisuda, carrancuda e mal-agradecida (afinal, foram os marinheiros que extinguiram as chibatadas).

A Olsen, o pior mesmo virá nas criações culturais e populares. Tivemos canções de protesto, como "O Mestre-Sala dos Mares", de Aldir Blanc e João Bosco. Mas sujeitos inspirados adoram transformar a casmurrice em risos. Imaginem o "Funk do Opróbrio"? Ou, no Carnaval, a "Marchinha das Abjetas"? Criatividade não falta a esse povo.

Olsen evitaria essas situações vexaminosas e deixaria João Cândido dormir em paz caso aceitasse a popularidade do herói. Ao perseguirem a memória, mesmo passados 114 anos da Revolta da Chibata e, pasmem, 55 anos da morte do Almirante Negro, ele e o oficialato geram mais likes nas redes sociais que emojis contrários ao projeto de lei.

Sem realizar autocrítica, jogam a "culpa" na marujada. Ora, os marinheiros propuseram metas para mudar aquela indigna realidade: melhor distribuição dos serviços para diminuir as altercações e cobranças a bordo; sem indisciplinas, desnecessário o código disciplinar draconiano. A partir daí seria melhorar a educação de marinheiros complicados e afastar oficiais rigorosos demais.

Enfim, deveriam reconhecer seus erros, agradecer a colaboração dos marinheiros, celebrando 1910. A Marinha seria festejada por seu povo. E, se permitem, existe um belo mestre-sala dos mares para evoluir nesse desfile. Chama-se João Cândido Felisberto, o Almirante Negro.

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Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste artigo grafava a palavra "opróbrio" de forma incorreta. O texto foi corrigido.

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