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Gustavo Gusso

Mais Médicos: solução simples e errada para um problema complexo

Intervenção pontual do governo federal desequilibra o sistema de saúde e diminui a qualidade da atenção primária; foco deve ser a reestruturação

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Gustavo Gusso

Professor de clínica geral e propedêutica da Universidade de São Paulo

Tais, 55 anos, fez residência de medicina de família e comunidade na década de 1990 e passou a maior parte da sua vida profissional em uma mesma região, sendo dez anos na mesma cidade. Em 2023, foi substituída por um bolsista do Mais Médicos e teve que se mudar.

Histórias como essa acontecem em todo o país. O Mais Médicos (MM) completou dez anos em 2023. Sobreviveu ao governo Jair Bolsonaro e à pandemia. O propósito inicial era pagar uma bolsa para médicos trabalharem em locais de difícil provimento. Essa bolsa permaneceu com o mesmo valor —R$ 10 mil para 40 horas semanais, incluindo quatro horas de supervisão— até este ano, quando foi finalmente reajustada para R$ 12.500,80, já com desconto de R$ 1.557,20 do INSS. O nome, "bolsa formação", pretende disfarçar que se trata na verdade de um vínculo de trabalho —afinal, médicos com excelente formação acabam tendo que aderir ou se mudar de cidade.

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante cerimônia para sancionar a lei que retoma o programa Mais Médicos - Gabriela Biló/Folhapress

O programa, que chegou a ter mais de 10 mil médicos cubanos, hoje conta com 25 mil vagas ocupadas —metade da quantidade de equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), sendo que os últimos editais tiveram candidatos brasileiros de sobra. A combinação dessa política com a abertura de faculdades de medicina culminou neste aparente sucesso do programa. Antes do MM, a principal queixa dos prefeitos era a dificuldade de encontrar médicos ou, então, tinham que pagar salários maiores do que os deles próprios. De fato, havia um enorme problema de provimento. Hoje há relatos de excesso de vagas, e médicos do MM são alocados em emergência ou até na regulação. Apesar da atenção primária ser municipalizada, o prefeito praticamente já não precisa custear o médico.

Além da "bolsa formação", há bolsa para supervisores e tutores —uma tentativa de conferir um aspecto de formação ao programa, que também funciona como um "cala-boca" aos potenciais críticos, em geral professores ou lideranças da área. Está claro que se trata de vínculo de emprego e que chamar de "formação" é minimizar a capacidade cognitiva dos próprios apoiadores que historicamente sempre lutaram por vínculos de trabalho com mais garantias.

Muitos países do mundo têm o mesmo problema de provimento de médicos para a atenção primária porque essa é uma área que exige necessariamente volume de profissionais e descentralização dos recursos. Há inúmeras discussões de como fazer isso de forma sustentável em áreas rurais ou menos favorecidas economicamente. A Inglaterra, por exemplo, está atualmente com um déficit de 2.000 médicos de família, o que foi agravado pelo brexit. Nos acalorados debates, não há menção à comercialização de vagas de faculdades de medicina ou à remuneração através de bolsa. O foco está na reestruturação do sistema.

Hoje o Brasil conta com mais de 500 mil médicos atuantes e 339 faculdades de medicina com 46 mil ingressantes, número proporcionalmente superior ao da maioria dos países desenvolvidos. Acaba de ser publicado um estudo chamado "Mais Médicos, melhor saúde?", realizado por economistas da Universidade Oxford, que concluiu que o programa não teve grande impacto na saúde da população, seja na mortalidade ou em hospitalizações. Os autores sugerem que o aumento do número de médicos deveria fazer parte de "um programa maior de políticas que fortaleçam o sistema de atenção primária e o sistema de saúde em geral".

A intervenção do governo de forma pontual, sem atuar na estrutura, desequilibra o sistema e diminui a qualidade da atenção primária, quase obrigando a expansão do sistema privado. Se o governo tinha a intenção de fornecer médicos para a atenção primária com as novas faculdades, a combinação com a expansão do MM e a desconexão com uma estratégia de regulação das vagas de residência, tornando esta mandatória, está criando um efeito paradoxal sem precedentes —que é a viabilidade de planos de saúde de mais baixo custo com acesso caótico a especialistas. Esse modelo disputa com o SUS, e o sonho de um sistema de saúde público estruturado e de qualidade vai ficando cada vez mais distante.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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