Após atritos com Bolsonaro e Lava Jato, Dodge deixa PGR e pressiona sucessor

Procuradora passará bastão para interino e cobra independência do órgão após indicação de Aras pelo presidente

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Brasília

Preterida pelo presidente Jair Bolsonaro para mais um mandato de procuradora-geral da República, Raquel Dodge, 58, deixa o posto nesta terça-feira (17) e passará o bastão ao vice-presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal, Alcides Martins —que assumirá as funções interinamente.

Após dois anos de uma gestão marcada por atritos com a Lava Jato e por ter denunciado Bolsonaro antes de ele se tornar presidente, Dodge buscou elevar a cobrança sobre o subprocurador-geral Augusto Aras, indicado pelo presidente para sucedê-la na PGR

Em discurso na véspera de deixar o cargo, Dodge reforçou na noite desta segunda-feira (16) a necessidade de o Ministério Público Federal se manter independente e autônomo para exercer suas funções.

Aras, que ainda depende de aprovação no Senado, foi escolhido por Bolsonaro após correr por fora da lista tríplice da categoria e defender bandeiras alinhadas às do presidente. 

“É com independência e autonomia que o Ministério Público cumpre a sua missão constitucional, que é cara no sentido de que fora da ordem democrática não há salvação. Sem proteção dos direitos fundamentais não há sociedade justa, e sem justiça não tem democracia”, afirmou Dodge.

Na última semana, a procuradora-geral fez discurso no Supremo Tribunal Federal pedindo "um alerta para que fiquem atentos a todos os sinais de pressão sobre a democracia liberal".

Na quarta (18) está prevista uma transferência de cargo protocolar, no próprio gabinete da PGR, em reunião na qual Dodge deve repassar ao interino Alcides Martins algumas informações importantes para que seja dada continuidade ao seu trabalho.

Mas a expectativa é que ele permaneça só até a semana que vem no comando do Ministério Público Federal. 

O relator da indicação de Aras na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado, Eduardo Braga (MDB-AM), apresentou nesta segunda (16) parecer favorável ao subprocurador-geral. A sabatina e a votação tanto na comissão como no plenário da Casa devem ocorrer no próximo dia 25.

Os senadores não têm demonstrado resistências a Aras, que percorre gabinetes em busca de apoio.

O relator Eduardo Braga, em seu parecer, destacou dois compromissos assumidos por ele diante de líderes partidários.

O indicado por Bolsonaro prometeu devolver sua carteira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e retirar-se da sociedade do escritório Aras Advogados Associados, com sede em Salvador.

Braga diz, porém, que não há impedimento para que Aras seja sócio de um escritório de advocacia porque ele ingressou no Ministério Público antes da promulgação da Constituição de 1988.

Antes de deixar a cadeira de comando da PGR, Dodge pretende apresentar um relatório de sua gestão nesta terça. Uma prévia do documento foi apresentada na sexta (13) a integrantes de sua equipe.

Na ocasião, ela enfatizou sua ação na área social e de direitos humanos. Disse ter apresentado 65 ações diretas de inconstitucionalidade e de descumprimento de preceito fundamental no STF, defendendo, por exemplo, direitos de presos e o cumprimento, pelos estados, dos mínimos constitucionais em gastos com saúde.

Embora criticada por, supostamente, reduzir o ritmo de delações premiadas, abertura de inquéritos e de denúncias contra políticos por corrupção, reiterou que, durante seu mandato, nunca faltou apoio para as investigações e para as forças-tarefas do MPF, entre elas a da Lava Jato.

Dodge chegou à PGR pela primeira vez em setembro de 2017, indicada pelo então presidente Michel Temer (MDB), após ter ficado em segundo lugar na eleição para formar a lista tríplice, promovida pela ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República).

Neste ano ela não disputou a eleição interna, após ter tido uma série de atritos com membros da carreira, sobretudo por causa da Lava Jato.

Nascida em Morrinhos (GO), Dodge é filha do procurador aposentado José Ferreira. Tem mestrado em direito pela Universidade Harvard e ingressou no Ministério Público Federal em 1987.

Já atuou no STJ (Superior Tribunal de Justiça) na área criminal, coordenou a câmara criminal do MPF, atuou na operação Caixa de Pandora —que revelou o mensalão do DEM no Distrito Federal, em 2009— e participou da redação do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo.

Quando chegou ao comando da PGR, em 2017, Dodge fez um forte discurso em defesa dos direitos humanos e da proteção de direitos fundamentais, aspectos que foram ficando menos destacados em seus discursos ao longo do tempo no cargo.

No meio político e jurídico, acreditava-se inicialmente que Dodge não teria chances de ser reconduzida para um novo mandato, sobretudo por ter denunciado Bolsonaro em abril de 2018 sob acusação de racismo, antes de ele ser eleito presidente.

Desde maio deste ano, porém, o cenário mudou e ela cresceu na bolsa de apostas. Com a simpatia de ministros do Supremo e apoio de parlamentares, Dodge declarou que estava à disposição de sua instituição caso fosse reconduzida, mesmo por fora da lista tríplice.

A declaração aumentou a desconfiança e as críticas de colegas, que consideram a eleição interna para a formação da lista tríplice um instrumento importante para garantir a independência da PGR em relação ao Executivo.

Dodge assumiu o cargo há quase dois anos com o desafio de mudar o estilo de condução da instituição em relação a seu antecessor, Rodrigo Janot, mas, ao mesmo tempo, evitar que o ritmo de investigações criminais, como as da Lava Jato, diminuísse.

Nesse quesito, ao longo do mandato, procuradores apontaram demora dela para fechar novos acordos de delação premiada e uma queda no número de denúncias oferecidas ao STF contra políticos de destaque.

Aliados da procuradora-geral defendem sua gestão afirmando que era preciso pôr ordem na casa e resgatar a credibilidade da PGR, que, na visão deles, ficou abalada na administração de Janot. O antecessor de Dodge deixou o órgão em meio à polêmica delação da JBS.

Nos quase dois anos no cargo, Dodge não concedeu entrevista a nenhum jornalista, exceto em ocasiões em que participou de pequenas entrevistas coletivas, como quando rompeu a barragem de Brumadinho (MG), no início deste ano. Seu estilo sempre foi definido por seus pares como discreto e centralizador.

As declarações mais duras de Dodge foram nos autos de processos no Supremo. Num dos exemplos mais ruidosos, Dodge contestou a legalidade do fundo de R$ 2,5 bilhões que a Lava Jato de Curitiba pretendia criar com dinheiro de multas acertadas pela Petrobras nos EUA, como reparação pelo esquema de corrupção desbaratado.

A ação ajuizada pela procuradora-geral contra o fundo bilionário ampliou o distanciamento que havia entre ela e setores do MPF mais alinhados à Lava Jato.

No mês passado, em protesto contra Dodge, a equipe de trabalho da Lava Jato na PGR fez um pedido de demissão coletiva citando "grave incompatibilidade de entendimento" com manifestação do órgão enviada ao Supremo —com arquivamento de trechos da delação do ex-presidente da OAS Léo Pinheiro.

Em outro episódio que provocou duros embates, Dodge foi contra o inquérito aberto pelo presidente do STF, Dias Toffoli, para apurar fake news, ameaças e ofensas contra ministros da corte.

Apesar de ela ter determinado o arquivamento, o inquérito continua a tramitar sob sigilo e sem a participação da PGR.


Ações de Dodge à frente da PGR

Racismo
Em abril de 2018, Dodge denunciou o então deputado Jair Bolsonaro pelo crime de racismo contra quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e LGBTs. A ação se referia a uma palestra de Bolsonaro no clube Hebraica, no Rio de Janeiro, em abril de 2017. Na ocasião, Bolsonaro, entre outras coisas, disse que tem uma filha porque deu "uma fraquejada", criticou a presença de refugiados no país e afirmou que quilombola "não serve nem para procriar". Em setembro do ano passado, o STF rejeitou a denúncia da PGR

Fundo da Lava Jato
Dodge contestou no STF a legalidade do fundo bilionário que a Lava Jato de Curitiba pretendia criar com dinheiro de multas acertadas pela Petrobras nos EUA, como reparação pelo esquema desbaratado. O acordo inicial previa a criação de uma fundação privada para combater a corrupção. Por decisão do ministro Alexandre de Moares, o dinheiro foi bloqueado e a criação de entidade foi suspensa. No início do mês, governo, PGR e Supremo acordaram que os recursos serão destinados para a Amazônia e para a educação

Inquérito das fake news
Dodge é contra o inquérito que corre no Supremo e apura fake news, ameaças e ofensas a ministros e seus familiares. Ela pediu esclarecimentos à corte e sugeriu que o STF extrapolou suas atribuições ao instaurar a investigação. Dodge defende o arquivamento do inquérito, que, para ela, é inconstitucional, violou o devido processo legal e feriu o sistema acusatório, segundo o qual o órgão que julga não pode ser o mesmo que investiga

Deportação sumária
Na semana passada, Dodge pediu ao STF que suspenda portaria do ministro da Justiça, Sergio Moro, que prevê o impedimento da entrada, a repatriação e a deportação sumária de estrangeiros considerados perigosos, ainda que não tenham sido condenados

Censura na Bienal
No dia 7, Dodge pediu ao Supremo que derrubasse a decisão do tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que permitia a apreensão de livros com temática LGBT na Bienal do Livro do Rio. Um dia depois, o presidente da corte, Dias Toffoli, acatou o pedido de PGR


Próximos passos para a nomeação do PGR

Sabatina - Augusto Aras precisa ser sabatinado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado. A sessão foi marcada para o dia 25.set

Votação na CCJ - Após a sabatina, os 27 senadores da comissão votam para decidir se aprovam seu nome 

Votação no plenário - O parecer da CCJ é encaminhado ao plenário, onde Aras precisará de maioria absoluta (41 senadores) para ser aprovado

Interino - O mandato da atual procuradora-geral, Raquel Dodge, termina nesta terça (17). Até a aprovação de Aras, assume interinamente o vice-presidente do Conselho Superior do MPF, Alcides Martins
 

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