Veto de Bolsonaro à Folha fere Constituição e pode configurar improbidade, dizem especialistas

Para advogados, presidente viola princípios da administração pública ao excluir Folha de licitação

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Brasília

A exclusão da Folha de licitação da Presidência para o fornecimento de acesso digital ao noticiário fere o princípio de impessoalidade da administração pública e a Constituição, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. 

De acordo com a professora de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Estefânia Barbosa, a decisão do governo fere os artigos da Constituição que tratam de liberdade de imprensa e o artigo 37, que trata dos princípios da administração pública. 

O presidente Jair Bolsonaro - Adriano Machado/Reuters

“Do ponto de vista do administrador público, ele não tem como discriminar. Por isso são feitas licitação, concurso. É para não ter jornal que vai falar só a meu favor, tenho que ter críticas”, afirma. 

Para ela, a decisão também caracteriza uma censura indireta, o que viola o artigo 220 da Constituição de 1988, segundo o qual “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição”. “Ele quer tirar a fonte de orçamento, de sustentabilidade [do jornal] e isso é bem abusivo”, afirma. 

O texto constitucional diz que os princípios da administração são legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. 

A professora diz que as ameaças que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vinha fazendo à Folha e seus anunciantes denotam uma falta de impessoalidade. “Ele fez várias ameaças antidemocráticas por não aceitar as denúncias [publicadas pelo jornal] contra sua família, principalmente”, afirma.

Edital de pregão eletrônico publicado na quinta-feira (28) no Diário Oficial da União prevê a contratação por um ano, prorrogável por mais cinco, de uma empresa especializada em oferecer a assinatura dos veículos à Presidência.

A lista cita 24 jornais e 10 revistas. A Folha não é mencionada. O pregão eletrônico, marcado para 10 de dezembro, tem um valor total estimado de R$ 194 mil: R$ 131 mil para jornais e R$ 63 mil para revistas.

 

O advogado especialista em direito administrativo Saulo Ávila também afirma que o princípio da impessoalidade foi ferido e que a licitação poderia ser alvo de investigação de improbidade administrativa. 

“Caracteriza uma ação civil pública para averiguar possível improbidade pelo artigo 11 da lei”, diz ele, para quem também pode haver vício de motivação na licitação, que tornaria o ato nulo. 

 

O edital traz a seguinte informação como justificativa: “o acesso a informações de maneira rápida, precisa e confiável é uma real necessidade das unidades da Presidência da República, fornecendo subsídios fundamentais para a tomada de decisões, além de possibilitar a tempestiva produção de contrarrespostas, tendo em vista que as ações deste órgão são continuamente matérias de divulgação ampla na mídia nacional”. 

Se a ideia é você assinar jornais, obter informação, por que a Folha está sendo excluída, já que é um dos principais veículos do país?”, diz Ávila.

Para a mestra em direito público administrativo Vera Chemim, se por um lado é dado ao presidente da República poderes discricionários de escolha, por outro eles devem seguir as regras constitucionais. 

 

“Existe uma liberdade total de participar de um processo de licitação, qualquer um pode participar”, afirma ela. 

As duas especialistas dizem que o caso poderia configurar crime de responsabilidade. Para Barbosa, o presidente poderia ser alvo de representação por atentar contra o exercício de direitos políticos e também com relação ao princípio de impessoalidade.  

Os dois pontos constam do artigo 85 da Constituição, que define entre os crimes de responsabilidade os atos do presidente que atentem, entre outros, ao “exercício dos direitos políticos, individuais e sociais” e “à probidade na administração”.

“Ele está lá como Bolsonaro presidente e não como Bolsonaro na casa dele, decidindo cancelar a assinatura da Folha”, diz Chemim. 

 

A decisão também pode criar problemas para Bolsonaro na Corte Interamericana de Direitos, segundo representantes da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) ouvidos pela reportagem. 

A Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, estabelece em seu artigo 13 os princípios da liberdade de imprensa. 

Lá está condenada não apenas a censura direta —como a que ocorreu na ditadura militar brasileira— mas também maneiras de censura indireta. É neste segundo caso que se encaixa a decisão do governo. 

“Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões”, diz a declaração. 

Por isso, especialistas da Unesco dizem que, se o caso chegasse à corte internacional, a tendência seria a condenação do governo com base na convenção. Para que isso ocorra, no entanto, é preciso primeiro que a disputa passe por todo o sistema judicial brasileiro.

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