Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Entre o fascismo e o centrão, Bolsonaro visa embaçar horizonte de seu próprio impeachment

Cloroquina da política, Brasil paga muito caro pela irresponsabilidade de milhões que riram excitados

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Tales Ab'Sáber

Ensaísta e psicanalista, é autor de "Dilma Rousseff e o ódio político"

Após dois anos e meio de um governo ruim e desorganizador do país, com tentativas de destruição institucional da democracia e fortes déficits sociais, políticas irresponsáveis e desastradas de grande gravidade no mundo da vida —como na saúde pública, no ambiente e na ciência, além do lugar isolado projetado do Brasil no mundo—, com a transformação do presidente em um motoqueiro de propaganda de si mesmo, em campanha permanente, Jair Bolsonaro parece completar a sua conversão à política mais tradicional de toma lá dá cá em face ao Congresso brasileiro e seu “centrão”.

Assim, ele repõe na ordem do dia a imagem do degradado bom e velho presidencialismo de coalizão, tão apontado por tantas tragédias em outros momentos do país. No entanto, um presidencialismo de coalizão ainda pior que busca sustentar agora o próprio bolsonarismo: um projeto autoritário e policialesco da vida, totalizante, que expressa nas ruas e na internet seu desejo permanente violento e abstruso de “AI-5 com Bolsonaro no poder”.

Como o salvador do futuro Michel Temer, que por duas vezes cedeu orçamento e benefícios aos políticos do Congresso para evitar a abertura de um processo de impeachment pela revelação de suas negociações escondidas, Bolsonaro cede agora governo e gestão ao grupo de políticos do qual ele sempre fez parte, mesmo com a retórica antidemocrática que o diferenciou.

Como se sabe, tal política visa exatamente embaçar o horizonte, muito justificado pelos fatos, de seu próprio impeachment. Bolsonaro, que nas próprias palavras anacrônicas “é do centrão”, completou a volta redonda do percurso de quem nunca saiu do lugar, da sua última conversão a si próprio.

Político comum e irrelevante da direita fisiológica brasileira, chefe de família de clã rachadinho, cujos ganhos e desvios do erário eram geridos por amigos milicianos, Bolsonaro sempre circulou pelos partidos de venda de posições e de interesses na política brasileira, cada um daqueles a que já foi filiado um dia.

Partidos que ele compra agora o voto, com a facilidade tradicional: cargos de poder para seus dirigentes no Executivo e com um incrível orçamento oculto, de dinheiro direto para a compra de tratores superfaturados e outras benesses do tipo. Tudo normal no mundo da tradição edificante fisiológica da direita brasileira, que vê a política como idêntica ao interesse particular, e que deseja proteger, mais uma vez, um presidente sem legitimidade pelos próprios erros e desgoverno no Brasil.

Oscilando entre a certeza da direita fisiológica nacional de estar diante de um igual, um homem que fez carreira política no centrão, e a convocação social da parte autoritária e fora do mundo da sociedade brasileira para atacar a própria democracia que o levou ao poder, Bolsonaro completa por fim o quadro de suas posições políticas.

Da extrema direita que sempre enunciou, como político de interesse corporativo dos aposentados do Exército, de policiais e de milicianos, inimigo dos direitos humanos por proteção da caserna, e grosseiro misógino e homofóbico, no momento mesmo da expansão mundial dos direitos ao reconhecimento; a político comum do centrão na partilha do Estado, jogando o jogo direto dos interesses particulares, como os da própria família e dos desqualificados do bolsonarismo. O mesmo centrão que seu grupo ideológico criminalizava ontem —visando de fato, criminalizar a esquerda, e Lula, e apenas ele.

Bolsonaro é o maior nome, o representante real, encarnado, da política da farsa e da tragédia, com que a “nova direita” do Brasil chegou ao poder a qualquer custo.

Este movimento histórico traumático acrescentou às mazelas corruptas tradicionais da política brasileira reorganizadas a voz autoritária e inimiga da democracia, que pede instrumentos de exceção para si própria, AI-5 ad hoc, para poder melhor censurar, torturar e matar —como seus aliados e eleitores dos quartéis fizeram no passado.

Sem apresentar projeto ou razão histórica que não seja ir passando a boiada, o bolsonarismo confunde apenas quem deseja ser confundido. Uma hora com anticomunismo paranoico, outra, como paladino da falsa moral na política, outra, defendendo in extremis família e religião, que não estão sob ataque no Brasil, outra, como chefe do fundo autoritário e irresponsável nacional, e ainda outra, como político comum das práticas de interesses particulares de Estado.

Para se acreditar neste governo dissociado, como dizem os psicanalistas, é necessário que não se acredite em mais nada. Niilismo do poder, como vemos, nada é valor verdadeiro para Bolsonaro. Nem democracia, nem justiça social, certamente, nem mesmo a vida no país, tratada como temos visto.

O que temos de fato é a famosa volubilidade malévola da direita brasileira em si mesma: verdade do dia, com direito autoconcedido a falácias, mentiras e calúnias, pelo poder do dia. Para muitos, no Brasil e no mundo, sob vários aspectos e critérios, modalidade política nova de barbárie. Cloroquina da política, o Brasil paga muito caro pela irresponsabilidade dos que, aos milhões, riram excitados ao aceitarem estas novas modalidades, sem nenhum caráter, de fascismo.

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