Realidade paralela de grupos antidemocráticos soma medo a teorias conspiratórias

Apoiadores radicais do presidente Jair Bolsonaro pedem um golpe militar para impedir a posse de Lula em 1º de janeiro

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São Paulo

Se os atos antidemocráticos diminuíram nas estradas, nos grupos bolsonaristas de Telegram eles encontram espaço e identificação de milhares.

O pedido por intervenção militar virou comportamento comum há uma semana, ancorado no que bolsonaristas entendem por apoios cifrados do presidente Jair Bolsonaro (PL), das Forças Armadas e da mídia estrangeira.

Protesto antidemocrático de bolsonaristas na frente do Quartel do Comando Militar do Sudeste, no Ibirapuera, contra a eleição de Lula
Protesto antidemocrático de bolsonaristas na frente do Quartel do Comando Militar do Sudeste, no Ibirapuera, contra a eleição de Lula - : Mathilde Missioneiro/Folhapress

Na quarta-feira (2), Bolsonaro publicou um vídeo em que dizia que os protestos eram bem-vindos. Foi explícito ao afirmar, no entanto, que era contrário a interdições nas rodovias. Uma das leituras entre radicais foi a de que o presidente teria apoiado a intervenção militar.

Desde a derrota para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), os argumentos principais nos grupos de conversa extremistas dizem que o chefe do Executivo não pode apoiar publicamente as manifestações, que teria um plano junto com as Forças Armadas e que sua vontade é que a população permaneça na rua.

O pronunciamento do chefe do Executivo diminuiu as barricadas, mas deslocou as manifestações para as frentes dos quartéis. O pelotão digital se comporta como se Bolsonaro precisasse da ajuda deles para impedir que Lula tome posse.

O brasão do Exército na mesa em que Bolsonaro se pronunciou e até um erro de português no post de seu Facebook (o termo desobstrução saiu com um 's' a mais, criando um SOS no meio da palavra) foram decodificados como um endosso.

Embora pareçam sátiras criadas por infiltrados da esquerda, casam plenamente com as teses defendidas nos últimos dias.

"O que uniu todos os segmentos do bolsonarismo nos grupos foi a intervenção militar, seja para os que foram para a frente dos quartéis, seja para os que soltaram a mão do presidente, que é uma fatia menor. A narrativa mestra é a da intervenção, e isso ficou claro logo depois da eleição", diz a antropóloga Letícia Cesarino (UFSC), que se debruçou sobre o estudo de desinformação política e de grupos de extrema-direita nos últimos meses.

A indignação diante da derrota –não aceita, pois a crença geral é que houve fraude– intensificou o agrupamento dos bolsonaristas mais radicais em torno de teorias conspiratórias, que não ficaram restritas a fóruns fechados, como antigamente, mas expostas em grupos abertos de Telegram, nas redes sociais, em lives com milhares de visualizações e nas ruas.

Uma notícia falsa, sem nenhuma conexão com a realidade, apontou que o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), teria sido preso. A informação levou bolsonaristas a se abraçarem e a gritarem no centro de Porto Alegre. Uma mulher foi ao chão de joelhos, batia no peito e dizia: "o Brasil é nosso, o Brasil é nosso".

Já o que teria sido encarado como apoio das Forças Armadas veio do Stories de Instagram, no qual o Exército disse um simples #BomDiaCombatentes.

Bolsonaristas se dedicaram a semana inteira para pedir SOS nas páginas oficiais das Forças Armadas, na esperança de que elas salvassem o Brasil de Lula. Qualquer filmagem de um militar em seu posto de trabalho é encarado como apoio.

A teoria mais nova é a comprovação da fraude eleitoral feita por uma auditoria argentina, alarde que correu como rastilho de pólvora na sexta-feira (4).

Um relatório apócrifo de 70 páginas, que durante a semana foi atribuído às Forças Armadas, apareceu em espanhol em uma transmissão num canal argentino no YouTube (a live foi derrubada, mas juntou meio milhão de pessoas).

Os grupos também entendem que a mídia internacional dá a devida cobertura aos protestos e solicitam que os manifestantes marquem os perfis Fox News, NBC, CBS e New York Times em seus registros na internet.

A cereja do bolo conspiratório foi quando o Facebook e o Instagram exibiram o rótulo "as eleições estão sendo apuradas" no lugar de "já foi divulgado um vencedor das eleições". A crença é que as redes teriam alterado o status por algum motivo oculto, embora tenha sido uma falha técnica.

"Sempre existiu teoria da conspiração, mas Bolsonaro ajudou a criar uma esfera pública paralela. Como líder populista, conversa com vários segmentos –como o das ciências alternativas na pandemia, por exemplo–, e conseguiu agregar esses segmentos num nível mais alto. Eles tiveram respaldo, se fortaleceram e cresceram", afirma Cesarino.

Para o psicanalista Ricardo Goldenberg, que já estudou a relação entre política e psicanálise, as teorias da conspiração e o que se convencionou chamar de realidade paralela são mecanismos psicanalíticos usados por indivíduos para confirmarem medos ou desejos. A novidade, para ele, é o fenômeno acontecer em uma escala nacional.

"Construímos a realidade a partir de fantasias inconscientes. Pensamos que todos estão na mesma realidade comum, mas na verdade não estamos. A novidade é que milhões no Brasil acreditam que estão em uma e o resto da sociedade, em outra."

Embora pareça representar apenas uma franja radical, a mobilização por intervenção militar na capital paulista pode ter reunido até mais apoiadores do que o 7 de setembro, segundo levantamento do Monitor do Debate Político do Meio Digital, da USP, feito a partir de fotografias tiradas com drones.

Foram cerca de 30,7 mil pessoas só na frente do Comando Militar do Sudeste, sendo que também havia protesto em um centro de preparação de oficiais em São Paulo. No 7 de setembro da avenida Paulista, foram 32,7 mil pessoas. Dessa vez, não houve convocação de youtubers famosos, nem do clã Bolsonaro.

Pablo Ortellado, coordenador do projeto na USP, afirma que a coordenação desse levante foi subterrânea, de modo que pouco se falava disso no Twitter no primeiro dia, enquanto a história já pegava fogo em grupos de WhatsApp e Telegram. Ele não descarta, porém, articulação com a campanha.

"Foi um movimento sem cara, não vemos lideranças, influenciadores, é algo totalmente subterrâneo. Foi uma articulação vigorosa e oculta em grupos de WhatsApp e Telegram, mas ela não aconteceu de forma espontânea, é coordenada", afirma.

A realidade paralela de grupos antidemocráticos

  • A ideia difundida é que o artigo 142 da Constituição Federal serviria para apoiar uma intervenção federal, solicitada por Bolsonaro para acalmar os ânimos da população. Para juristas, esse artigo serve justamente para impedir um golpe
  • Protestos teriam que durar no mínimo 72 horas para que as Forças Armadas atuassem
  • Bolsonaro estaria impedido de falar publicamente que apoia intervenção, portanto emitiria códigos, como o brasão do Exército em uma live e um erro proposital de português que gerou um SOS
  • É preciso inundar as redes oficiais das Forças Armadas com pedidos de ajuda, assim elas estão aptas a agir
  • A mídia internacional estaria ciente da fraude eleitoral no Brasil
  • A eleição teria sido fraudada, seja por problema nas urnas ou pelo suposto conluio político das autoridades e do PT
  • Alexandre de Moraes teria sido preso três dias depois do segundo turno
  • Relatório sobre fraude atribuído às Forças Armadas durante a semana passou a ser ligado a uma consultoria de direita argentina
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